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Mostrando postagens de 2008

Matsuo Basho: Fragmentos de "Trilha Estreita ao Confim"

TRILHA ESTREITA AO CONFIM Dias e noites vagueiam pela eternidade. Assim são os anos que vêm e vão como viajantes que lançam os barcos através dos mares ou cavalgam pela terra. Muitos foram os ancestrais que sucumbiram pela estrada. Também tenho sido tentado há muito pela nuvemovente ventania, tomado por um grande desejo de sempre partir. O outono já estava quase no fim quando voltei para casa às margens do rio Sumida após perambular pelas costas. Tive então tempo suficiente para retirar a poeira e arrumar minhas coisas. Porém, assim que a primavera começou a florescer pelos campos, senti novamente o impulso de seguir errante sob os amplos céus e cruzar os portais de Shirakawa. Os deuses pareciam ter-me possuído a alma, e a estrada parecia convidar-me a novas paragens. Tratai logo de consertar minhas calças, remendar o chapéu e aplicar “moxa” sobre minhas pernas a fim de fortalecê-las. Começava já a vislumbrar a brilhante lua cheia resplandecendo sobre as ilhas de Matsushima. Por fim, c

Pascal Bruckner: Fragmentos de "A Euforia Perpétua - Ensaio sobre o dever de Felicidade"

A DIVINA INCONSEQUÊNCIA Não há, pois, salvação fora da banalidade, ou mais precisamente, esta última constitui contraditoriamente o freio e a possibilidade da primeira (ao mesmo tempo que exclui qualquer esperança de salvação definitiva). Sonhar com a abolição da banalidade é nutrir, sob uma aparência de grande energia, uma fantasia policial para disciplinar à custa de excitantes o enfadonho escoar dos dias para dele extrais o máximo de sensações. Deveríamos então qualificar de inexistente a vida das pessoas idosas, para as quais a disponibilidade de prazeres encolheu, mas que, apesar da diminuição, continuam a usufruir de inúmeras satisfações? Não conseguimos sair da mesmice do cotidiano apenas com a força de vontade ou a exortação e “a mais agradável as disposições tem muitos intervalos de abatimento”, como dizia a Enciclopédia no século XVIII. Os surrealistas pretendiam encantar de novo o mundo, os situacionistas alçar a vida até os cimos. Mas, da mesma maneira que o slogan “Viver s

Goethe: Fragmentos de"Os Sofrimentos de Werther"

PRIMEIRO LIVRO 4 de maio de 1771 Como me sinto feliz por ter partido! Meu bom amigo, assim é o coração dos homens! Deixar-te a ti, a quem tanto, de quem me sentia inseparável, e estar contente! Bem sei que me perdoarás. As minhas outras afeiçoes não foram como que esquadrinhadas e enfim achadas pelo destino para torturar um coração como este que pulsa no meu peito? Pobre Leonora! E contudo foi inocente. Poderia eu impedir que, enquanto os encantos de sua irmã me faziam delibar deliciosos passatempos, uma paixão surgisse em seu triste coração?! E todavia... poderei afirmar que esteja inteiramente inculpado? Acaso não lhe nutri os ternos sentimentos? Porventura as sinceras expressões da natureza – que muita vez nos fazem sorrir, embora não sejam risíveis – não me regozijaram intimamente? Porventura eu não... – Oh! Que mania esta do homem queixar-se de si próprio! Vou corrigir-me, amigo, eu to prometo; não tornarei a ruminar estes pequenos males que a sorte nos envia, tal qual fiz sempre.

Aldous Huxley: Fragmentos de "Demônios da Loucura"

Quando o delírio das massas é explorado em benefício do governo e das igrejas ortodoxas, os exploradores são sempre muito cuidadosos em não deixar a intoxicação ir muito longe. As minorias governantes aproveitam-se do desejo ardente que sentem os seus governados pela transcendência horizontal para, primeiramente, distraí-los e, logo em seguida, colocá-los em um estado de sugestibilidade aguçada. As cerimônias políticas e religiosas são acolhidas pelas massas como oportunidades para se embriagarem e pelos governantes como oportunidades de implantar idéias em mentes momentaneamente incapazes de raciocinar e ter livre-arbítrio. O sintoma final da doença provocada pela intoxicação de massas é a violência maníaca. Exemplos de delírio de multidões que culminam em destruição gratuita, em automutilação feroz, em selvajaria fratricida sem propósito e contra os interesses elementares de todos os envolvidos, são encontrados em quase todas as páginas dos livros dos antropólogos e – um pouco menos

Lautréamont: Fragmentos de "Contos de Maldoror"

CANTO QUINTO Que o leitor não se zangue comigo se minha prosa não teve a felicidade de agradar-lhe. Afirmas que minhas idéias ao menos são originais. O que dizes, homem de bem, é a verdade; porém uma verdade parcial! Ora, que abundante fonte de erros e mal-entendidos reside em toda verdade parcial! Os bandos de estorninhos têm um modo de voar que lhes é próprio e parece submetido a uma tática uniforme e regular, tal como a de uma tropa disciplinada que obedece com precisão à voz de um só chefe. É à voz do instinto que os estorninhos obedecem e o instinto os leva a se aproximarem sempre do centro do pelotão, enquanto a rapidez do vôo os leva constantemente para mais além; de forma tal que essa multidão de pássaros, reunidos por uma tendência comum na direção do mesmo ponto imantado, indo e vindo sem cessar, circulando e cruzando-se em todas as direções, formam uma espécie de turbilhão extremamente agitado, cuja massa total, sem chegar a seguir uma direção bem determinada, parece ter um

Luigi Pirandello: Fragmentos de "Um, nenhum e cem mil"

Por ora falarei apenas daquelas coisinhas que comecei a fazer em forma de pantomimas, na tenra infância da minha loucura, em frente a todos os espelhos de casa, espreitando por todos os lados para não ser flagrado por minha mulher, na espera ansiosa de que ela, saindo para fazer compras ou alguma visita, finalmente me deixasse sozinho por um bom tempo. Não queria fazer como um comediante, que estuda os movimentos e compõe no rosto as expressões dos vários sentimentos e estados de espírito. Ao contrário, queria surpreender-me na plena naturalidade dos meus atos, nas súbitas alterações da face, a cada oscilação do ânimo: por exemplo, num espanto imprevisto (e alçava de repente as sobrancelhas até a raiz dos cabelos, arregalando olhos e boca e alongando o rosto como se um fio interno me esticasse); ou num sofrimento profundo (e franzia a testa, imaginando a morte de minha mulher, e semicerrava as pálpebras sombrias como se quisesse recobrir aquela dor); ou numa raiva feroz (e rangia os de

Rainer Maria Rilke: Fragmentos de "O Diário de Florença"

São momentos apenas, mas nestes poucos momentos vejo as profundezas da terra. E vejo a origem de todas as coisas, como se fossem as raízes de árvores grandes e farfalhantes. E vejo como todas se entrelaçam e se amparam mutuamente, como se fossem irmãs. E todas alimentam-se de uma mesma fonte. São instantes apenas, mas nestes instantes meus olhos descortinam as profundezas do firmamento. E lá vêem as estrelas como flores tranqüilas e sorridentes destas árvores farfalhantes. E elas balouçam, acenam umas para as outras, e sabem que de uma profundidade lhes advêm o perfume e a doçura. São apenas instantes, mas nestes instantes os meus olhos abrangem a terra. E vejo que os seres humanos são troncos fortes e solitários que, à semelhança de amplas pontes, estabelecem uma ligação entre as raízes e as flores, e conduzem as seivas em direção ao sol, tranqüila e prazerosamente. Ontem de manhã ainda aconteceu algo que me parece importante registrar aqui. Sentado no meu amplo terraço de mármore, eu

Elias Canetti: Fragmentos "O Teatro Terrível"

Meditando sobre a imortalidade literária, Elias Canetti referiu-se a Stendhal e à grande autonomia daquele escritor diante de toda mística. A única fé de quem escreveu O Vermelho e o Negro residia na certeza de se dirigir para alguns poucos, sabendo que muitos o leriam no futuro. Quem assim opera, sente desprezo pelos que usufruem uma glória instantânea e a exibem vaidosa e tolamente. Stendhal teria feito algo muito próximo ao vivido por Maquiavel: o italiano afirmava que, após um dia comum, vestia as melhores roupas, entretanto em seu escritório para conversar com Platão e Aristóteles. Deste modo, O Príncipe entrou para a lista onde brilham a República e a Ética a Nicômaco. Nas palavras de Canetti, o escritor profundo opta pela companhia dos que produzem obras lidas ainda hoje “daqueles que falam conosco, dos quais nos nutrimos”. O reconhecimento que sentimos em relação a eles “é uma gratidão pela própria vida”. Mais adiante, em Massa e Poder, é definido o símile entre o escritor imor

Thomas de Quincey: Fragmentos de "Confissões de um Comedor de Ópio"

O dia em que abandonei Oswestry era iluminado pelo louro sol dos últimos dias de novembro. Poder-se-ia dizer com tanta verdade como do luar de Jessica em “O mercador de Veneza”, que aquele fulgor solar parecia dormir sobre os bosques e os campos, tal era seu religioso silêncio, seu repouso profundo como a morte. Aquele era um desses dias que nos proporciona a curta e amável estação do estio que renasce para dizer-nos adeus, estação que, com diferentes nomes, é conhecida em toda parte. Na América do Norte chama-se o “verão índio”; na Alemanha setentrional e central é o “verão das velhas”, ou mais raramente o “verão das solteironas”. E essa última e rápida ressurreição do estio em suas reminiscências mais brilhantes, ressurreição que não tem raízes no passado, que não tem nenhum apoio no porvir; lembra os lânguidos e caprichosos resplendores da lâmpada agonizante, imita o que se chama nos enfermos “a lucidez ante a morte” quando estão chegando ao fim. Nela se sente a luta produzida entr
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Homens sem Mãos, Acrílica sobre tela, 50 X 70 Inspirada nos homens bizarros de Magrite A Propósito de René Magrite Magritte praticava o surrealismo realista, ou “realismo mágico”. Começou imitando a vanguarda, mas precisava realmente de uma linguagem mais poética e viu-se influenciado pela pintura metafísica de Chirico. Magritte tinha espírito travesso, e, em A queda, seus bizarros homens de chapéu-coco despencam do céu absolutamente sereno, expressando algo da vida como conhecemos. Sua arte, pintada com tal nitidez que parece muitíssimo realista, caracteriza o amor surrealista aos paradoxos visuais: embora as coisas possam dar a impressão de serem normais, existem anomalias por toda a parte: A Queda tem uma estranha exatidão, e o surrealismo atrai justamente porque explora nossa compreensão oculta da esquisitice terrena. Mudou-se para Paris em 1927 , onde começou a se envolver nas atividades do grupo surrealista, tornando-se grande amigo dos poetas André Breton e Paul Éluard e do

Erasmo de Roterdã: Fragmentos de "Elogio da Loucura"

Com efeito, sem prazeres, que é a vida? Merecerá o nome de vida?... Vós me aplaudis, meus amigos! Ah! Bem sabia eu que sois demasiadamente loucos, isto é, demasiadamente sábios, para não terdes a minha opinião... Até os estóicos amam o prazer, que não saberiam odiar. Deixemo-los dissimular, deixemos que se esforcem por difamar a volúpia aos olhos do vulgo, cobrindo-a das mais atrozes injúrias: são momices apenas! O que querem é afastar os outros, para dela gozarem com muito maior liberdade. Por todos os deuses! Digam-me eles qual o instante da vida que não é triste, tedioso, desagradável, insípido, insuportável, se o não condimenta o prazer, a loucura. Poderia contentar-me com o testemunho de Sófocles, o grande poeta jamais demasiadamente louvado, que tão belo elogio me fez, ao dizer: A mais agradável das vidas é a que se passa sem nenhuma espécie de sabedoria. Examinemos, pois, o assunto mais minuciosamente. Antes de tudo, não é verdade que a infância, a primeira idade do homem, é a m

Gerard de Nerval: Fragmentos de "As Filhas do Fogo"

ADRIANA Fui para a cama, mas nem aí consegui repouso. Mergulhado numa semi-sonolência, vinha-me à memória toda a minha mocidade. Esse estado, em que o espírito resiste ainda às estranhas combinações do sono, permite-nos, não raro, ver amontoarem-se em poucos minutos os quadros mais expressivos de um longo período da nossa vida. Imaginava eu um castelo do tempo de Henrique IV, com os seus telhados pontiagudos cobertos de ardósia e a sua face avermelhada, com as esquinas denteadas de pedra amarelecida, um vasto largo verde enquadrado por olmos e tílias, através de cuja folhagem se infiltravam os rubros raios do sol poente. Sobre a relva, as raparigas faziam uma roda, cantando velhas árias transmitidas por suas mães, canções essas de um francês tão naturalmente puro, que se tornava aprazível viver nessa velha terra do Valois onde, durante mais de mil anos, batera o coração da França. Eu era o único rapaz da roda, e comigo trouxera a minha companheira, Sílvia, bastante nova ainda, uma rapa
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Casario com Bandeirinhas, acrilica sobre tela 50 X 70 Ao mestre Alfredo Volpi com carinho Mesmo tendo nascido na Itália, de onde foi trazido com menos de dois anos, Volpi é um dos mais importantes artistas brasileiros deste século. Antes de mais nada, trata-se de um pintor original, que inventou sozinho sua própria linguagem. Isso é muito raro na arte produzida em países do terceiro mundo, cuja cultura erudita sempre deve algo a modelos internacionais. Diferentemente das de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari, cujas analogias estilísticas com Léger e Picasso são reais, a pintura de Volpi não se parece com a de ninguém no mundo. Pode, quando muito ter, às vezes, um clima poético próximo ao da pintura de Paul Klee - mas sem semelhanças formais. Embora fosse da mesma geração dos modernistas, Volpi não participou da Semana de Arte Moderna de 1922. Dela estava separado, em primeiro lugar, por uma questão de classe social. Imigrante humilde, lutava arduamente pela vida no momento em que os in

Octavio Paz: Fragmentos de "A Outra Voz"

QUANTIA E VALIA Esta reflexão começou com uma pergunta dividida em duas partes. Uma, a primeira, de ordem quantitativa: quantos são os leitores de poemas? Como vimos, a questão numérica, isolada, não tem sentido. O numero de leitores varia com as distintas sociedades e épocas; varia, igualmente, no interior de cada época e ainda em relação à mesma pessoa: o esotérico e ilegível Eliot, lido por um bando de excêntricos em 1920, se converte no bispo Eliot, ouvido com unção por multidões em 1940. para ter sentido o quantos? Deve se associar com a segunda parte da pergunta: quem? Que classe de pessoas lêem livros de poemas? O quem inclui o quantos: melhor dizendo, o dilui, deixa de ser um numero. A pergunta sobre o quem implica, em primeiro lugar, pluralidade de espaços: onde? Em que país ou em que cidade? Em seguida, introduz uma dimensão temporal: quando, em que época, em que século, ano? Finalmente, o quando e o onde estão ligados a determinadas classes sociais, instituições políticas e

André Breton: Fragmentos de "Nadja"

Quem sou? Se excepcionalmente recorresse a um adágio, tudo poderia realmente resumir-se em saber “com quem ando?” Devo confessar que essa expressão me perturba um pouco, pois tende a estabelecer entre mim e certas pessoas relações mais singulares, menos evitáveis, mais perturbadoras do que poderia imaginar. Diz muito mais do que intenta dizer, faz-me desempenhar em vida o papel de um fantasma, alude evidentemente ao que eu deveria deixar de ser, para ser quem na verdade sou. Tomando-a de forma um tanto abusiva nesta acepção, dá-me a entender que tudo quanto considero manifestações objetivas de minha existência, manifestações mais ou menos deliberadas, não passa, nos limites desta vida, de uma atividade cujo verdadeiro campo permanece para mim inteiramente desconhecido. A representação que tenho do “fantasma” e daquilo que ele apresenta de convencional, não apenas em seu aspecto mas ainda em sua cega submissão a certas contingências de tempo e de lugar, vale, antes de mais nada, para mi
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Qual a diferença entre cor de velho e cor de adolescente? Escreveu-me a divindade certo dia e eu, que nem fósforos coleccionava, mas tinha ainda a tonalidade juvenil, recortei a divina rubrica destruindo assim o seu valor e o da carta. Ali nos banhávamos, em letras de luz narcísica; o ego resplandecente e muito maior que rã da fábula. Os girassóis debruçados das pálpebras como candelabros. E agora vamos cor-de-burro-quando-foge cor-de-noite-quando-chega mal acompanhada, vamos indo cada vez mais para Norte para as pradarias de neve pintar com as cores da morte. Estela Guedes Primavera de 2008 Brancos Espirais. Repelentes espirais, sobre acrilica 50 X 70

Sobre Fernando Pessoa

Amigos leitores. permita-me hoje não postar meus "Fragmentos Literários", em pró de tão belo texto escrito por José Saramago, publicado em " O Caderno de Saramago" no endereço http://caderno.josesaramago.org/ Sobre Fernando Pessoa Era um homem que sabia idiomas e fazia versos. Ganhou o pão e o vinho pondo palavras no lugar de palavras, fez versos como os versos se fazem, como se fosse a primeira vez. Começou por se chamar Fernando, pessoa como toda a gente. Um dia lembrou-se de anunciar o aparecimento iminente de um super-Camões, um camões muito maior que o antigo, mas, sendo uma pessoa conhecidamente discreta, que soía andar pelos Douradores de gabardina clara, gravata de lacinho e chapéu sem plumas, não disse que o super-Camões era ele próprio. Afinal, um super-Camões não vai além de ser um camões maior, e ele estava de reserva para ser Fernando Pessoas, fenómeno nunca visto antes em Portugal. Naturalmente, a sua vida era feita de dias, e dos dias sabemos nós que

Carl Solomon: Fragmentos de "De Repente, Acidentes"

Um Livro Capítulo I Eu acho justo, antes de morrer, acrescentar mais um livro aos milhares já publicados. Já que milhões de mentes perturbadas falaram antes de mim, eu também vou falar. Não há necessidade de manter a pose de um mudo. Da sarjeta, levarei você aos grandes edifícios, e de lá à cozinha de um navio em alto-mar, e de lá para uma cela acolchoada, e de lá para o Yankee Stadium. Mickey Mantle, Ho Chi Minh, e Kierkegaard estão todos ao meu alcance. A carne corta a carne, o sangue escorre na pia, e assim eu escrevo. Minhas recordações só começam nos anos quarenta, e é ai que vou começar minha história. Diante da vitrine de uma livraria, meu olhar pousou por acaso em um exemplar de “Ouvert La Nuit” de Paul Morand. Eu avistei E.N., um colega da universidade, contemplando seu perfil em um espelho de mão. Ele e seu perfil! Sempre lembrei dele obcecado com seu perfil. Nessa época, a maioria das pessoas da minha idade parecia preocupada em primeiro lugar com a aparência. Uma espécie de

Octavio Paz: fragmentos de "Marcel Duchamp, ou o Castelo da Pureza"

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Talvez os dois pintores que maior influência exerceram em nosso século sejam Pablo Picasso e Marcel Duchamp. O primeiro pelas suas obras, o segundo por uma obra que é a própria negação da moderna noção de obra. As mudanças de Picasso – seria mais exato dizer: suas metamorfoses – não cessaram de nos surpreender durante mais de cinqüenta anos; a inatividade de Duchamp não é menos surpreendente e, à sua maneira, não menos fecunda. As criações do grande espanhol foram, simultaneamente, encarnações e profecias das mutações que nossa época sofreu, desde o fim impressionismo até a Segunda Guerra Mundial. Encarnações: em suas telas e em seus objetos o espírito moderno se torna visível e palpável; profecias: em suas mudanças nosso tempo só se afirma para negar-se e só se nega para inventar-se e ir mais além de si. Não um precipitado de tempo puro, não as cristalizações de Klee, Kandinsky ou Braque, mas o próprio tempo, sua urgência brutal, a iminência do agora. Desde o princípio Duchamp opôs à

Peixe Amarelo, acrilica sobre tela, 50 X 70

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Teoria das Cores - Paul Klee Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido à chegada do novo peixe.O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia o que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos factos e punham-se por esta ordem: peixe, vermelho, pintor - sendo o vermelho o nexo entre o peixe e o quadro, através do pintor. O preto formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor. Ao meditar sobre as razões da mudança exactamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efectuando um número de mágica, mostrava que existia

Rosário Fusco: fragmentos de "A.S.A. - Associação dos Solitários Anônimos"

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- Quando formos uma potência em número de correligionários e simpatizantes, estabeleceremos um horário universal para a bênção diária do nosso trago de vida eterna. Isso não é uma regra: é o reconhecimento da conveniência de uma disciplina para o bem comum. Disciplina, aqui, quer dizer acordo. Formado o círculo em volta da Terra, nossas preces removerão outros mundos com um simples cálice d’água. Assim como o oceano cabe na gota do mar, numa gota d’água transistorizada todas as potências do céu e da terra se concentram. Nesse dia, passaremos a fornecer fórmulas de minúsculos comprimidos (de fabricação caseira) para serem ingeridos à noite, de acordo com a preferência ocupacional de cada um: estímulo de vocações e rendimento de profissões – do lixeiro à vendedora de violetas, passando pelos viciados em esperma – além da receita da grande pílula universal, que chamaremos de alfa-zero. Última etapa do nosso esforço pioneiro, capaz de servir indiscriminadamente aos futuros exercícios, físi

Samuel Beckett: fragmentos de "Malone Morre"

Logo enfim vou estar bem morto apesar de tudo. Talvez mês que vem. Vai ser abril ou maio. O ano ainda é uma criança, mil sinaizinhos me dizem. Quem sabe esteja errado, quem sabe consigo chegar até o dia da festa de são João Batista ou até mesmo o quatorze de julho, festa da liberdade. Qual o quê, sou bem capaz de durar até a transfiguração, me conheço bem, ou até a Assunção. Mas não acredito, não acho que estou errado em dizer que estas festas vão ter que passar sem mim, este ano. Tive essa sensação, faz dias que venho tendo, e acredito nela. Mas em que difere daquelas que fazem de mim gato e sapato desde que me conheço por gente? Não, esse é o tipo de armadilha em que não caio mais, meu desejo de pitoresco passou. Podia morrer hoje, se quisesse, apenas fazendo um pequeno esforço, se eu pudesse querer, se eu pudesse fazer esforço. Mas não me custa nada me deixar morrer, quietinho, sem precipitar as coisas. Alguma coisa deve ter mudado. Não vou forçar nenhum dos pratos da balança, nem p