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Mostrando postagens de novembro, 2008

Lautréamont: Fragmentos de "Contos de Maldoror"

CANTO QUINTO Que o leitor não se zangue comigo se minha prosa não teve a felicidade de agradar-lhe. Afirmas que minhas idéias ao menos são originais. O que dizes, homem de bem, é a verdade; porém uma verdade parcial! Ora, que abundante fonte de erros e mal-entendidos reside em toda verdade parcial! Os bandos de estorninhos têm um modo de voar que lhes é próprio e parece submetido a uma tática uniforme e regular, tal como a de uma tropa disciplinada que obedece com precisão à voz de um só chefe. É à voz do instinto que os estorninhos obedecem e o instinto os leva a se aproximarem sempre do centro do pelotão, enquanto a rapidez do vôo os leva constantemente para mais além; de forma tal que essa multidão de pássaros, reunidos por uma tendência comum na direção do mesmo ponto imantado, indo e vindo sem cessar, circulando e cruzando-se em todas as direções, formam uma espécie de turbilhão extremamente agitado, cuja massa total, sem chegar a seguir uma direção bem determinada, parece ter um

Luigi Pirandello: Fragmentos de "Um, nenhum e cem mil"

Por ora falarei apenas daquelas coisinhas que comecei a fazer em forma de pantomimas, na tenra infância da minha loucura, em frente a todos os espelhos de casa, espreitando por todos os lados para não ser flagrado por minha mulher, na espera ansiosa de que ela, saindo para fazer compras ou alguma visita, finalmente me deixasse sozinho por um bom tempo. Não queria fazer como um comediante, que estuda os movimentos e compõe no rosto as expressões dos vários sentimentos e estados de espírito. Ao contrário, queria surpreender-me na plena naturalidade dos meus atos, nas súbitas alterações da face, a cada oscilação do ânimo: por exemplo, num espanto imprevisto (e alçava de repente as sobrancelhas até a raiz dos cabelos, arregalando olhos e boca e alongando o rosto como se um fio interno me esticasse); ou num sofrimento profundo (e franzia a testa, imaginando a morte de minha mulher, e semicerrava as pálpebras sombrias como se quisesse recobrir aquela dor); ou numa raiva feroz (e rangia os de

Rainer Maria Rilke: Fragmentos de "O Diário de Florença"

São momentos apenas, mas nestes poucos momentos vejo as profundezas da terra. E vejo a origem de todas as coisas, como se fossem as raízes de árvores grandes e farfalhantes. E vejo como todas se entrelaçam e se amparam mutuamente, como se fossem irmãs. E todas alimentam-se de uma mesma fonte. São instantes apenas, mas nestes instantes meus olhos descortinam as profundezas do firmamento. E lá vêem as estrelas como flores tranqüilas e sorridentes destas árvores farfalhantes. E elas balouçam, acenam umas para as outras, e sabem que de uma profundidade lhes advêm o perfume e a doçura. São apenas instantes, mas nestes instantes os meus olhos abrangem a terra. E vejo que os seres humanos são troncos fortes e solitários que, à semelhança de amplas pontes, estabelecem uma ligação entre as raízes e as flores, e conduzem as seivas em direção ao sol, tranqüila e prazerosamente. Ontem de manhã ainda aconteceu algo que me parece importante registrar aqui. Sentado no meu amplo terraço de mármore, eu

Elias Canetti: Fragmentos "O Teatro Terrível"

Meditando sobre a imortalidade literária, Elias Canetti referiu-se a Stendhal e à grande autonomia daquele escritor diante de toda mística. A única fé de quem escreveu O Vermelho e o Negro residia na certeza de se dirigir para alguns poucos, sabendo que muitos o leriam no futuro. Quem assim opera, sente desprezo pelos que usufruem uma glória instantânea e a exibem vaidosa e tolamente. Stendhal teria feito algo muito próximo ao vivido por Maquiavel: o italiano afirmava que, após um dia comum, vestia as melhores roupas, entretanto em seu escritório para conversar com Platão e Aristóteles. Deste modo, O Príncipe entrou para a lista onde brilham a República e a Ética a Nicômaco. Nas palavras de Canetti, o escritor profundo opta pela companhia dos que produzem obras lidas ainda hoje “daqueles que falam conosco, dos quais nos nutrimos”. O reconhecimento que sentimos em relação a eles “é uma gratidão pela própria vida”. Mais adiante, em Massa e Poder, é definido o símile entre o escritor imor

Thomas de Quincey: Fragmentos de "Confissões de um Comedor de Ópio"

O dia em que abandonei Oswestry era iluminado pelo louro sol dos últimos dias de novembro. Poder-se-ia dizer com tanta verdade como do luar de Jessica em “O mercador de Veneza”, que aquele fulgor solar parecia dormir sobre os bosques e os campos, tal era seu religioso silêncio, seu repouso profundo como a morte. Aquele era um desses dias que nos proporciona a curta e amável estação do estio que renasce para dizer-nos adeus, estação que, com diferentes nomes, é conhecida em toda parte. Na América do Norte chama-se o “verão índio”; na Alemanha setentrional e central é o “verão das velhas”, ou mais raramente o “verão das solteironas”. E essa última e rápida ressurreição do estio em suas reminiscências mais brilhantes, ressurreição que não tem raízes no passado, que não tem nenhum apoio no porvir; lembra os lânguidos e caprichosos resplendores da lâmpada agonizante, imita o que se chama nos enfermos “a lucidez ante a morte” quando estão chegando ao fim. Nela se sente a luta produzida entr