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Mostrando postagens de dezembro, 2008

Matsuo Basho: Fragmentos de "Trilha Estreita ao Confim"

TRILHA ESTREITA AO CONFIM Dias e noites vagueiam pela eternidade. Assim são os anos que vêm e vão como viajantes que lançam os barcos através dos mares ou cavalgam pela terra. Muitos foram os ancestrais que sucumbiram pela estrada. Também tenho sido tentado há muito pela nuvemovente ventania, tomado por um grande desejo de sempre partir. O outono já estava quase no fim quando voltei para casa às margens do rio Sumida após perambular pelas costas. Tive então tempo suficiente para retirar a poeira e arrumar minhas coisas. Porém, assim que a primavera começou a florescer pelos campos, senti novamente o impulso de seguir errante sob os amplos céus e cruzar os portais de Shirakawa. Os deuses pareciam ter-me possuído a alma, e a estrada parecia convidar-me a novas paragens. Tratai logo de consertar minhas calças, remendar o chapéu e aplicar “moxa” sobre minhas pernas a fim de fortalecê-las. Começava já a vislumbrar a brilhante lua cheia resplandecendo sobre as ilhas de Matsushima. Por fim, c

Pascal Bruckner: Fragmentos de "A Euforia Perpétua - Ensaio sobre o dever de Felicidade"

A DIVINA INCONSEQUÊNCIA Não há, pois, salvação fora da banalidade, ou mais precisamente, esta última constitui contraditoriamente o freio e a possibilidade da primeira (ao mesmo tempo que exclui qualquer esperança de salvação definitiva). Sonhar com a abolição da banalidade é nutrir, sob uma aparência de grande energia, uma fantasia policial para disciplinar à custa de excitantes o enfadonho escoar dos dias para dele extrais o máximo de sensações. Deveríamos então qualificar de inexistente a vida das pessoas idosas, para as quais a disponibilidade de prazeres encolheu, mas que, apesar da diminuição, continuam a usufruir de inúmeras satisfações? Não conseguimos sair da mesmice do cotidiano apenas com a força de vontade ou a exortação e “a mais agradável as disposições tem muitos intervalos de abatimento”, como dizia a Enciclopédia no século XVIII. Os surrealistas pretendiam encantar de novo o mundo, os situacionistas alçar a vida até os cimos. Mas, da mesma maneira que o slogan “Viver s

Goethe: Fragmentos de"Os Sofrimentos de Werther"

PRIMEIRO LIVRO 4 de maio de 1771 Como me sinto feliz por ter partido! Meu bom amigo, assim é o coração dos homens! Deixar-te a ti, a quem tanto, de quem me sentia inseparável, e estar contente! Bem sei que me perdoarás. As minhas outras afeiçoes não foram como que esquadrinhadas e enfim achadas pelo destino para torturar um coração como este que pulsa no meu peito? Pobre Leonora! E contudo foi inocente. Poderia eu impedir que, enquanto os encantos de sua irmã me faziam delibar deliciosos passatempos, uma paixão surgisse em seu triste coração?! E todavia... poderei afirmar que esteja inteiramente inculpado? Acaso não lhe nutri os ternos sentimentos? Porventura as sinceras expressões da natureza – que muita vez nos fazem sorrir, embora não sejam risíveis – não me regozijaram intimamente? Porventura eu não... – Oh! Que mania esta do homem queixar-se de si próprio! Vou corrigir-me, amigo, eu to prometo; não tornarei a ruminar estes pequenos males que a sorte nos envia, tal qual fiz sempre.

Aldous Huxley: Fragmentos de "Demônios da Loucura"

Quando o delírio das massas é explorado em benefício do governo e das igrejas ortodoxas, os exploradores são sempre muito cuidadosos em não deixar a intoxicação ir muito longe. As minorias governantes aproveitam-se do desejo ardente que sentem os seus governados pela transcendência horizontal para, primeiramente, distraí-los e, logo em seguida, colocá-los em um estado de sugestibilidade aguçada. As cerimônias políticas e religiosas são acolhidas pelas massas como oportunidades para se embriagarem e pelos governantes como oportunidades de implantar idéias em mentes momentaneamente incapazes de raciocinar e ter livre-arbítrio. O sintoma final da doença provocada pela intoxicação de massas é a violência maníaca. Exemplos de delírio de multidões que culminam em destruição gratuita, em automutilação feroz, em selvajaria fratricida sem propósito e contra os interesses elementares de todos os envolvidos, são encontrados em quase todas as páginas dos livros dos antropólogos e – um pouco menos