Carl Solomon: Fragmentos de "De Repente, Acidentes"

Um Livro
Capítulo I

Eu acho justo, antes de morrer, acrescentar mais um livro aos milhares já publicados. Já que milhões de mentes perturbadas falaram antes de mim, eu também vou falar. Não há necessidade de manter a pose de um mudo. Da sarjeta, levarei você aos grandes edifícios, e de lá à cozinha de um navio em alto-mar, e de lá para uma cela acolchoada, e de lá para o Yankee Stadium. Mickey Mantle, Ho Chi Minh, e Kierkegaard estão todos ao meu alcance. A carne corta a carne, o sangue escorre na pia, e assim eu escrevo.
Minhas recordações só começam nos anos quarenta, e é ai que vou começar minha história. Diante da vitrine de uma livraria, meu olhar pousou por acaso em um exemplar de “Ouvert La Nuit” de Paul Morand. Eu avistei E.N., um colega da universidade, contemplando seu perfil em um espelho de mão. Ele e seu perfil! Sempre lembrei dele obcecado com seu perfil. Nessa época, a maioria das pessoas da minha idade parecia preocupada em primeiro lugar com a aparência. Uma espécie de dandismo impregnava meu meio. Fulano parecia Rimbaud, sicrano parecia Baudelaire. Um clima de decadência geral já estava surgindo. Decadência que precede a demência. É esta decadência, esta vaidade, este narcisismo que ainda é visível por toda cidade. Por que não pensei nisso (bem, estava muito ocupado) e não voltei ao livro de Baudelaire sobre o dandismo, que certamente é o melhor senão o único guia válido do comportamento desta época? Para o dândi, a coisa mais importante é o espelho. Ele vive no espelho. Esta é uma época obcecada pela aparência, pelo estilo.
No meio de todo o caos sobre a existência ou não de Deus, por que eu não pensei em Baudelaire?
Quer dizer que estou tentando acrescentar mais um livro àqueles que vocês já conhecem?
Bem, já fiz tratamento psiquiátrico demais para me entregar a Baudelaire ou para tomar a literatura como um guia. Talvez eu tenha ficado grosseiro e resignado.
Meu Deus! Como é chato escrever um livro!
Eu não sabia que era essa chatice, senão nem teria começado.
E que tipo de recompensa existe? Que alguém diga que Carl Solomon é um bom escritor ou que é brilhante? Pobre alma! Não é isso que eu quero da vida. Quero nadar, pescar e comer. Para sempre! Como um imortal no monte Olimpo.
Sim, esta é a minha única e solitária idéia de sucesso. A imortalidade física. Para mim morrer é ter fracassado. Ou viver, senão para sempre, pelo menos o máximo que puder. Uma vida literária não é o importante. Viver, só viver, eis o que importa. Emoção, não existe nada além da emoção.
Assim sendo, eu vou terminar o livro dizendo a você que neste momento me sinto maravilhosamente bem e espero que você também. Nós estamos saboreando este momento juntos. Até logo, caro leitor, foi maravilhoso conhecer você. Pode ser que a gente se encontre de novo.

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