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Edgar Allan Poe: Fragmentos de de “Histórias de Mistério e Imaginação”.

A Esfinge da Caveira Durante a terrível epidemia de cólera que reinou em Nova Iorque , aceitei o convite de um parente para passar duas semanas com ele no retiro do seu cottage orné nas margens do Hudson. Estávamos rodeados de todos os recursos comuns para as diversões estivais. E que tempo agradável teríamos passado a vaguear pelos bosques, a desenhar, a remar, a pescar, tomar banho ou entregues à música ou à leitura se não fossem as terríveis notícias que nos chegavam todas as manhãs da grande cidade. Não passava um dia que não nos trouxessem a notícia da morte de qualquer pessoa conhecida. Depois, à medida que a desgraça aumentava, habituávamo-nos a esperar diariamente a perda de algum amigo. Finalmente, tremíamos já à aproximação de qualquer mensageiro. O próprio ar do Sul parecia-nos impregnado do odor da morte. Aquele pensamento obcecante apossou-se, na realidade, do meu espírito. Não conseguia falar, pensar ou sonhar com outra coisa. O meu anfitrião era de temperamento menos ex

Henry Miller: Fragmentos de "A hora dos assassinos (um estudo sobre Rimbaud)"

Analogias, afinidades, correlações e repercussões. Foi em 1927, no fundo do porão de uma casa encardida de Brooklyn, que ouvi falar pela primeira vez em Rimbaud. Tinha então 36 anos e estava mergulhado na minha própria e tardia Temporada no Inferno. Um livro fascinante sobre Rimbaud rolava pela casa sem despertar minha curiosidade. O motivo era o ódio que sentia pela dona do livro, que na época morava conosco. Depois descobri que, em matéria de aspecto, temperamento e conduta, a mulher se parecia tanto com ele quanto é possível imaginar. Como já disse, embora Rimbaud fosse o tema principal das conversas entre Thelma e minha mulher, não fiz o menor esforço para conhecê-lo. Para dizer a verdade, lutei feito louco para tirá-lo da idéia; me parecia então o gênio do mal que, sem querer, era causa de todos os meus problemas e angústias. Notei que Thelma, a quem desprezava, se identificava com ele a ponto de tudo fazer para imitá-lo, não só no comportamento como também no tipo de versos que e

Paul Klee: Fragmentos de "Sobre a Arte Moderna e Outros Ensaios"

Sobre a Arte Moderna 4   Senhoras e senhores:  Ao tomar a palavra diante de meus trabalhos, que na verdade deveriam se expressar em sua própria linguagem, fico apreensivo, por não saber se os motivos que me levam a isso são suficientes, ou se vou falar de maneira apropriada. Pois se, como pintor, sinto possuir os meios de expressão para pôr os outros em movimento na direção em que eu mesmo sou impelido, não me sinto capaz de, usando palavras, indicar com a mesma certeza tal caminho. Entretanto me tranqüilizo pelo fato de que meu discurso não se dirige isoladamente aos senhores, mas sim completando as impressões recebidas de meus quadros – o que talvez possa dar a eles a caracterização que ainda está mal definida. Se eu conseguir fazer isso de algum modo, ficarei satisfeito e considerarei alcançado o objetivo de minha tentativa de argumentação diante dos senhores. Para me esquivar da reprovação “pinte, artista, não fale”, gostaria de levar em consideração principalmente a parte do proce

Wassily Kandinsky: Fragmento de "Do Espiritual na Arte"

O artista é e permanece livre para combinar os elementos abstratos e os elementos objetivos, para realizar uma escolha entre a série infinita das formas abstratas ou do material que os objetos lhe fornecem – em outras palavras, é livre para escolher seus próprios meios. Assim fazendo, ele obedece unicamente ao seu desejo interior. Uma forma hoje desprezada e desacreditada, que parece situar-se à margem da grande corrente da pintura, aguarda simplesmente o seu mestre. Essa forma não está morta, mas apenas em letargia. Quando o conteúdo – o espírito que só pode manifestar-se por essa forma aparentemente morta – alcança a maturidade, quando soa a hora de sua materialização, ele entra nessa forma e fala através dela. O profano, em particular, não deveria abeirar-se de uma obre perguntando-se o que o artista não fez; ou seja, não deveria colocar esta questão: “Em que o artista se dá ao luxo de desprezar as minhas expectativas?” Ao contrário, ele deveria perguntar-se o que o artista fez, faz

Oscar Wilde: Fragmentos de "O Retrato de Dorian Gray"

No dia seguinte, Dorian Gray não saiu de casa. Passou a maior parte do tempo em seu quarto, presa de um terror selvagem da morte, e, contudo, indiferente à vida. A certeza de estar sendo perseguido, tocaiado, começava a tomar conta dele. Estremecia, se o vento agitava as cortinas. As folhas secas atiradas contra as vidraças pareciam-lhe suas próprias resoluções inúteis e seus dolorosos pesares. Quando fechava os olhos, tinha a impressão de que via o rosto do marinheiro, que o espreitava através dos vidros embaçados pela neblina. Então, o pavor pesava-lhe no coração, mais uma vez. Mas talvez tudo aquilo fosse apenas fruto da sua imaginação, que atraía a vingança do fundo da noite e punha diante dele as cruéis imagens do castigo. A vida real era um caos, mas existia alguma coisa de terrivelmente lógico na imaginação. Era ela que colocava o arrependimento nos rastros do pecado. Era ela que proporcionava a cada crime sua prole horrenda. No mundo dos fatos comuns, nem os maus eram castigado

Abbas Kiarostami: o cineasta do nada e do tudo

Marcelo Miranda Nada acontece nos filmes de Abbas Kiarostami. Tudo acontece nos filmes de Abbas Kiarostami. Afirmações paradoxais, mas que definem de forma resumida e certeira o que é, na essência, o tipo de cinema feito por esse diretor iraniano prestigiado, elogiado e premiado. Mas como, num universo atual de filmes pirotecnicamente vazios, como os feitos pelo cinema-lixo de Hollywood, ou de certas produções pseudo-intelectuais e pretensiosas que pipocam nos festivais mundo afora, um cineasta como Kiarostami consegue respeito e reconhecimento? Para entender um pouco as duas afirmativas do início, é preciso, claro, recorrer aos filmes do diretor. Comecemos pela primeira: nada acontece. Significa quase literalmente isso: Kiarostami é a antítese do grande cinemão dos EUA, fincado na idéia de que os filmes devem contar uma historinha com introdução, desenvolvimento, clímax e conclusão, sem deixar praticamente nada para o próprio espectador, mastigando e engolindo tudo de uma vez. Kiarost

Georges Bataille: Fragmentos de 'O Erotismo"

O SENTIDO ÚLTIMO DO EROTISMO É A MORTE Na procura de beleza, existe um esforço para ter acesso à continuidade para além de uma ruptura e, ao mesmo tempo, um esforço para escapar dela. Esse esforço ambíguo não cessa de existir. Mas sua ambigüidade resume, retoma o movimento do erotismo. A multiplicação incomoda um estado de simplicidade do ser, um excesso derruba os limites, acaba de toda maneira em um transbordamento. Sempre é dado um limite com o qual o ser concorda. Ele identifica esse limite ao que ele é. O pensamento de que esse limite cesse de existir lhe causa horror. Mas nós nos enganamos levando a sério o limite e o acordo que o ser lhe dá. O limite só é dado para ser excedido. O medo (o horror) não indica a verdadeira decisão. Ao contrário, ele incita, por via indireta, a transposição dos limites. Se ao experimentarmos, sabemos que se trata de responder à vontade, inscrita em nós, de exceder os limites. Queremos excedê-los, e o horror experimentado significa o excesso ao qual