Campos de Carvalho: fragmentos de "Obra Reunida"

Onde está o vento?
Este peso nas costas, no pensamento – vem do teto ou das nuvens assim paradas, invisíveis me vendo: sinto que estão ali paradas, AQUI, bem sobre o meu corpo também imóvel – eu e o meu corpo paralisado e talvez já morto: mais ainda eu.
Se ao menos houvesse o vento – nem que fosse o ruído do vento, o rumor do vento como há o rumor do mar ou da chuva, ou qualquer rumor que não seja este silêncio, o deste silêncio! – Mas apenas ouço, vejo, o peso destas nuvens e do que está ainda mais em cima, de todo esse ar que me falta e que me traz esta asfixia, esta paralisia – como se me houvessem enterrado e eu estivesse enterrado: dentro desta mortalha.
Mais ainda não estou morto, sei que não estou, SEI: isto é o importante. E este silêncio, e agora este frio – antes não havia este frio – este silêncio neste frio, e este peso sobretudo este peso sobre a minha cabeça, tudo isso então é que estou sendo a vítima de algum mistério, não de um engano ou de uma alucinação mas de algum mistério, nem mesmo de um sonho ou de um pesadelo, pois me conheço e sei que estou sonhando: SEI.
Não me enterrariam assim vivo, e de pé – e nem eu deixaria, e nem eles deixariam, não sei quem mais eles: o médico, sim o médico, sempre haveria que haver um, mesmo que fosse meu inimigo – ou algum parente ou conhecido, um amigo: Aristeu por exemplo, para isso ele servia, trataria de dar logo o alarme, ou então a própria Diomira, um vizinho, ou mesmo Andréa em último caso. E depois – este raciocínio assim frio, mesmo que seja do frio, este modo como eu raciocino e continuo raciocinando, assim friamente – morto nenhum por vivo que fosse seria capaz de um raciocínio assim, morto nenhum, sobretudo assim vendados, mais esta, como os de uma múmia – sem ver nada senão esta nuvem invisível, e este silêncio nesta nuvem, a um palmo do meu nariz.
Preciso é manter a calma, muita calma, como até aqui – como um afogado para que não se afogue, não se afobe: a cabeça assim para cima, a minha cabeça, onde estão estes pensamentos e os que virão e hão de vir depois: bem para cima – sem me deixar tomar pelo pânico, por este ou por qualquer pânico – aí que seria o fim – sempre assim calmo, o mais calmo possível, como um afogado que ainda não se afogou, a cabeça bem para cima, os músculos bem relaxados, assim, exatamente o contrário da rigidez de um cadáver, ou do seu pânico, mesmo que já tenha sido arrastado e levado para o fundo: de pé assim como eu.
Há quanto tempo estou vagando neste mar, neste deserto – neste abismo? Há quantas noites?
Ainda estão comigo a minha carne e os meus ossos, esteja onde estiver ainda é em mim que eu estou viajando, assim parado mas girando com a Terra e o seu eixo, com estas águas e o seu silêncio: com este frio que só pode vir de um corpo imóvel ou projetado no infinito.
Já me parece ouvir sob os pés algo de estranho, os meus dois pés e não os de outro: assim como uma música feita de areia, como quando eu pisava a praia ainda que em pensamento, exatamente esta sensação de música nos pés. Posso estar suspenso – a corda! – mas toco com os pés essa areia da infância, assim e cada vez mais nítida, penetrando-me mais do que a penetro, sem que eu faça o mínimo esforço ou movimento. Que é um chão de areia eu não tenho dúvida, irreal ou real, eu suspenso da corda ou apenas meu pensamento, e esta lucidez que me põe tranqüilo e ao mesmo tempo em espanto: embora ainda calmo, muito mais calmo do que antes – terrivelmente calmo.
Destes pés é que me virá a revelação, qualquer que seja, e não do meu fígado nem dos intestinos, nem das minhas mãos que nem sei onde estão -: dos meus pés! Sinto, pressinto, algo tão silencioso e frio quanto eu mesmo, como se fosse apenas uma continuação do meu corpo mas não sendo: MAS NÃO É – um outro mundo que bem pode ser o meu mas também um mundo novo, completamente diferente, e que estou pisando pela primeira vez. Tocam-me não as águas mas a areia que há no fundo dessas águas, a AREIA – e já lhe posso até adivinhar a cor só pelo tato: vermelho, vermelha – como fazia em criança quando pegava alguma coisa no escuro. – Fofo e vermelho.
Daqui sairei eu e vivo, tenho certeza, apesar do frio e deste peso quase insuportável que suporto sobre os ombros, como se suportasse todo o peso do mundo. Valeu-me ao menos para isso a minha experiência de afogado, a minha inexperiência – e sobretudo o que me ficou da calma do irmão em cima e fora da sua bicicleta, o irmão, respirando e andando comigo desde que o enterraram dentro de mim. – É possível que este seja o seu mundo e ele me tenha arrastado até aqui, preso a essa corda que eu comprei e armei julgando ser minha: a corda justamente que se atira ao afogado para que não se afogue, não se afobe – assim como eu ainda há pouco, antes de atingir esta praia.
Estou caminhando – esta é que é a verdade! – e caminhando num caminho sem muro ou qualquer outro obstáculo – e de pé com os meus dois pés, o direito e o esquerdo, o esquerdo e o direito, um de cada vez, sem qualquer novidade – a não ser esta sensação de que estão caminhando por mim, me fazendo caminhar sem caminhar: o direito, o esquerdo: para a frente e não para trás – para a frente, como qualquer autômato.
Não fosse este silêncio eu diria que o mar está ou à minha direita ou à minha esquerda: - de qualquer forma esta é uma praia infinita e deserta, com esta areia assim fofa cedendo sob os meus pés, nunca antes pisada por ninguém ou animal nenhum, mesmo antediluviano. Ou então estou é num deserto, um imenso e frio deserto, e daí este silêncio e este peso do céu sobre mim – e essa corda que não é bem a minha corda nem a corda do irmão, mas a de que servem para arrastar alguém ao seu cativeiro – razão por que sou assim levado e não me levo, nem sinto esforço nenhum nesta caminhada que não é minha.
Ando e respiro apesar desta asfixia, e sobretudo penso: - continuo capaz de pensar e de raciocinar com o meu próprio raciocínio, como se ainda fosse um homem livre como ainda sou por dentro, apesar desta cegueira momentânea e desta falta de faro e de paladar, e até mesmo de tato e de contato, a não ser na raiz dos pés. Este pouco me basta por enquanto, na verdade sempre me bastou, nunca fui mais do que isto quando eu ainda tinha todos os meus sentidos, fizesse ou não este frio ou este silêncio em derredor, doessem ou não minhas entranhas com a minha condição de gêmeos: nem bem uma coisa nem outra – estivesse eu sem roupa ou vestido apenas com a roupa do pai e a do avô: travestido.
Ando e penso – e sobretudo respiro.

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