Oscar Wilde: Fragmentos de "O Retrato de Dorian Gray"

No dia seguinte, Dorian Gray não saiu de casa. Passou a maior parte do tempo em seu quarto, presa de um terror selvagem da morte, e, contudo, indiferente à vida. A certeza de estar sendo perseguido, tocaiado, começava a tomar conta dele. Estremecia, se o vento agitava as cortinas. As folhas secas atiradas contra as vidraças pareciam-lhe suas próprias resoluções inúteis e seus dolorosos pesares. Quando fechava os olhos, tinha a impressão de que via o rosto do marinheiro, que o espreitava através dos vidros embaçados pela neblina. Então, o pavor pesava-lhe no coração, mais uma vez.
Mas talvez tudo aquilo fosse apenas fruto da sua imaginação, que atraía a vingança do fundo da noite e punha diante dele as cruéis imagens do castigo. A vida real era um caos, mas existia alguma coisa de terrivelmente lógico na imaginação. Era ela que colocava o arrependimento nos rastros do pecado. Era ela que proporcionava a cada crime sua prole horrenda. No mundo dos fatos comuns, nem os maus eram castigados, nem os bons recompensados. Os fortes alcançavam o êxito e o fracasso era reservado aos fracos. E tudo não passava disso. Além do mais, qualquer estranho que rondasse a casa seria visto pelos guardas ou pelos criados. Se houvesse deixado marcas de seus passos nas alamedas, os jardineiros teriam comunicado. Sim: tinha sido tudo pura fantasia. O irmão de Sibyl Vane não regressara para matá-lo. Já deveria ter partido com seu navio, para naufragar em algum mar tempestuoso. Estava fora do perigo que ele representava, pois aquele homem não sabia, não podia saber quem era ele. A máscara da juventude fora a sua salvação.
Contudo, se tudo não passava de uma ilusão, como era terrível saber que a consciência era capaz de engendrar fantasmas tão medonhos, dar-lhes forma visível e movimento diante dos olhos das pessoas! Como seria horrível sua vida, se as sombras de seu crime devessem espreitá-lo dia e noite, ocultas em recantos tenebrosos, rindo-se dele, murmurando-lhe ao ouvido durante as festas, despertando-o com seus dedos gelados, quando estivesse adormecido! Empalideceu de pavor, diante daquele pensamento que se insinuava em sua mente, e teve a impressão de que o ar se tornava frio. Oh! Maldita hora, selvagem e de loucura, em que assassinara seu amigo! Com era medonha a mera lembrança daquela cena! Era capaz de reconstituí-la ponto por ponto. Cada pormenor espantoso ressurgia diante de seus olhos, mas ampliado pelo horror. A caverna do Tempo, assustadora e atapetada de vermelho, deixava escapar a imagem de seu pecado. Quando lorde Henry chegou, às seis horas, encontrou-o soluçando, como se seu coração fosse explodir.
Durante três dias, não teve coragem de sair. Mas depois, havia algo na atmosfera clara e perfumada pelos pinheiros daquela manhã de inverno que parecia devolver-lhe a alegria e o desejo ardente de viver. Porém, não haviam sido somente as condições físicas do ambiente que produziram aquela transformação. Sua própria natureza se revoltava contra aquele excesso de angústia que havia tentado mutilar ou empanar a sua serenidade perfeita. É o que sempre ocorre com pessoas de temperamento sutil e emotivo. Suas violentas paixões ou as aniquilam ou são subjugadas. Ou matam, ou morrem. As amarguras e os amores pouco profundos sobrevivem. Mas os grandes amores e os grandes desprazeres acabam destruídos pela sua própria exaltação. Acima de tudo, estava convencido de que fora vítima de sua imaginação dominada pelo terror, e encarava seus receios anteriores com um pouco de compaixão e mesmo com desprezo.

Comentários

Muitíssimo grato !

Estava procurando algum livro com pérolas dos melhores escritores.

Não havia encontrado nada que "batesse" nas livrarias.

Esse site é realmente um achado !

Sua seleção pessoal é impressionante, em relação à qualidade.

Parabéns.

Sou niteróiense também, nasci em Pendotiba e moro hoje em Icaraí.

Um abraço, Magno !
Líricos Olhares disse…
Este livro caro amigo, fez-me refletir muito, o li ainda bem jovem e mexeu muito comigo, ele tem uma requintada escrita e uma mensagem de muita profundidade, cultura nunca é demais, parabéns pelo blog, bj!
Carlos Magno disse…
Obrigado Cacau!
Estou voltando
Bjs

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