Baudrillard, Sobre o Destino

O destino seria então, uma forma de separação definitiva, irreversível. Mas uma espécie de reversibilidade faz com que as coisas separadas permaneçam cúmplices. A ultramicrofísica fala simultaneamente da separabilidade e da inseparabilidade das partículas. Onde quer que elas vão, e embora definitivamente divergentes, cada partícula permanece ligada, conectada à sua antipartícula. Eu não conseguiria levar mais longe a comparação, suponho, mas ela dá conta do recado, do que se mostra a nós como destino na tragédia, na qual ele é a forma do que nasce e do que morre sob o mesmo signo. O signo que conduz à vida, à existência, é o mesmo que conduz à morte. Será, portanto, sob o mesmo signo fatal que as coisas terão começo e fim. É este o sentido daquela famosa história da morte em Samarcande...Na praça de uma cidade, um soldado vê a morte fazer-lhe um sinal; apavorado, ele vai até o rei e lhe diz: "A morte me fez sinal, eu vou fugir para o mais longe possível, eu vou fugir para Samarcande".O rei convoca a morte para perguntar-lhe por que ela amedrontou assim seu capitão. E a morte lhe diz "Eu não quis causar-lhe medo, eu queria simplesmente lembrar a ele que nós temos um encontro marcado hoje à noite". O destino tem, assim, uma forma, de certo modo, esférica: quanto mais nos afastamos de um ponto, mais nos aproximamos dele. O destino não tem ‘intenções’ propriamente ditas, mas temos por vezes a impressão de que enquanto uma vida de glória e de sucesso se desenrola, em algum outro lugar um dispositivo trabalha obscuramente em sentido inverso e faz a euforia deslizar, de maneira imprevisível, para o drama. O evento fatal não é aquele que se pode explicar por suas causas, e sim aquele que, em um dado momento, contradiz todas as casualidades, aquele que vem de algum outro lugar, podemos encontrar causas para a morte de Diana e tentar reduzir o acontecimento a essas causas. Mas apelar para as causas a fim de justificar os efeitos é sempre um álibi: não esgotaremos dessa maneira o sentido, ou a falta de sentido, de um acontecimento é uma reversão do positivo em negativo, uma reversão que faz com que, quando as coisas são demasiadamente luxuosas, elas se tornem nefastas, como se estivesse em ação, silenciosamente, uma força sacrifical coletiva. O destino é sempre o principio da reversibilidade em ato. Neste sentido, eu diria que é o mundo que nos pensa, não de maneira discursiva, mas pelo avesso, contra todos os nossos esforços de pensá-lo pelo direito. Todos nós poderíamos facilmente encontrar exemplos disso. Mesmo nas coincidências, há toda uma arte. Quando a psicanálise fala em lapso, em substituição de termos no chiste, está igualmente no domínio da arte da coincidência: em dado momento, há uma estranha atração entre significantes, e é isto que faz o acontecer psíquico. Eu gostaria de imaginar, em contraposição a este universo totalmente informatizado que nos é dado ver, ou prever, um mundo que fosse apenas de coincidências. Esse mundo não seria um mundo do acaso e da indeterminação, e sim um mundo do destino. Todas as coincidências estão de certo modo predestinadas. À destinação, àquilo que tem uma finalidade clara, opor-se-ia, então, o destino, isto é, o que tem uma destinação secreta, uma predestinação - sem qualquer sentido religioso. A predestinação diria: tal momento é predestinado a tal outro, tal palavra a tal outra, como em um poema em que se tem a impressão de que as palavras já tinham, desde sempre, a vocação de se juntar. Do mesmo modo, na sedução, há uma forma de predestinação: entre o feminino e o masculino, a meu ver, não há uma relação diferencial, há também uma forma de destino. Somos sempre destinados ao outro, a uma troca, é uma forma dual e não - contrariamente à concepção que geralmente se tem - um destino individual. O destino é essa troca simbólica entre nós e o mundo que nos pensa e que nós pensamos, onde ocorre esse conflito e esse conluio, esse abalroamento e essa cumplicidade das coisas entre si. E aí está o crime, e a dimensão trágica. A punição é inescapável: haverá uma reversibilidade que fará com que alguma coisa seja, neste mesmo lugar, vingada."
Canetti escreveu: 'A vingança, não é preciso nos darmos ao trabalho de desejá-la; ela se fará, ela se faz automaticamente, pela reversibilidade das coisas.' È esta a forma do destino."
Comentários
Esse conceito do Duplo, essa metafísica antropológica que parece mais coisa de hindísmo ou budismo.
É realmente de impressionar. :)