Atalhos de Fuga

Tornei-me prisioneiro de mim mesmo.
Com esta frase, te saúdo amigo Baltazar!
Hoje, de forma saudosista, pus-me a recordar de nossos passeios noturnos pelos becos da boca maldita de Santos. Recordo-me bem de nossas prosas funestas, embaladas por rum e café. Sob os olhares desejosos de putas e travestis, caminhávamos desde o Café Paulista até a Bolsa do Café, onde, de suas escadarias recitávamos os Provérbios do Inferno de Blake ou, parafraseávamos jargões de nossa Internacional Socialista.
Pelos lábios de Solange, a puta mais bela e louca de Santos, nos era oferecido todos os coquetéis alucinógenos possíveis. Lembro-me, que certa noite, enquanto fumávamos, Solange, acometida por total descontrole, livrou-se de suas vestes, e, tal qual, Luz Del Fego, desfilou todo seu belo corpo tatuado pela General Câmara para nosso deleite. Quando das tardes caídas, subíamos até a Ponta da Praia para vermos o sol ser tragado pelas águas frias e azuladas vindas do sul. De repente sinto uma grande vontade de conversar contigo. Bem sei o alto preço que pagou para assim viver, e cuja liberdade entregava cada dia mais a tua vida boêmia e, como não poderia deixar de ser, também a sua poesia.
Entendo agora, caro Baltazar, sua luta em favor da recuperação do estandarte do Amor, usurpado e manchado pelo escárnio dos opressores do homem. Este continua sendo ainda nos dias de hoje, um bom combate que trava companheiros nossos como José Saramago, Floriano Martins, Soares Feitosa, Dom Helder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns. Tantos outros existem entre nós, a serviço deste Brasil cujo povo tão sofrido, agora finalmente está se erguendo, naquilo que Alceu Amoroso Lima chamou de “luta espontânea do povo”, para a reconquista simplesmente das liberdades democráticas.
Por onde andará Célio Cabeça? Mendigo elegante, de risada satânica, que, segundo sabia-se, pertenceu a nata intelectual dos anos 30. Sábio, sempre que nos avistava, retorcia-se á gargalhar. Estudioso da obra de Fernando Pessoa nos brindava com verdadeiras pérolas do ilustre Poeta Português, entremeados por doses, daquilo que, mais parecia ser álcool, do que propriamente cachaça. Ainda guardo comigo, sobras dum poema escrito por Célio em nossa homenagem, quando de nossos passeios madrugada à dentro.
Escreveu ele:
“Ainda hei de vê-los assim como eu, apodrecendo neste cais.
Sem teto, sem chão, sem qualquer outra perspectiva
Se não, a de morrer louco, desgraçadamente louco.
Sou a miséria exposta. Já tive essas suas roupas bem cortadas e coloridas,
Já tive este seu cheiro intelectual, essa sua pompa,
Quando Rei, meus súditos acotovelavam-se sob aquela sacada,
Implorando por minhas palavras, por meus poemas.

Ainda hei de vê-los assim como eu, devorados pelos assombros da poesia.
Já tive sol. Nos braços da mulher amada adormecia.
Estou morto, esperando a morte.
Quando poeta, provei de todos os venenos, das orgias participava, e como
Experimento lançava-me em jogos intermináveis.
Tive este cais aos meus pés,
Da Ponta da Praia, contemplava o sol se esparramando
No horizonte, deitando sobre o oceano, anunciando a
Chegada de minha amada noite.

Ainda hei de vê-los assim como eu.
Sem teto, sem vida, sem chão.”

Mas, afinal, por que de todo este saudosismo?
Passados quase duas décadas, retorno a este local, onde outrora a inocência associada a malandragem, eram vistas desfilando por esquinas e bares. Por sobre os escombros dos antigos prédios, sentávamos e, de forma descompassada, saudávamos a poesia. Incorporávamos Augusto dos Anjos, Lautréamont, Ginsberg, Kerouac e tantos outros. Ensinastes-me o caminho da desesperança e da dor. Pelos sobrados seculares, dançávamos em meios a tantos personagens, que o tempo aos poucos, tratou de sepultar. Quão belo era tê-lo como confidente!
Hoje, entregue aos atalhos que minha mente cria, como forma a preservar o passado que, não desejo perder, busco-o entre estas novas e barulhentas alamedas. Da nossa Santos de outrora, nada restou. Sucumbimos ao desejo do esvaziamento, a modernidade segue, a passos largos, sepultando a vida, a poesia e os sonhos.
Mas, loucos que somos, quero te dizer, por fim que, continuo fiel ao nosso pacto de não deixar que os sonhos morram, como parte deste compromisso que tenho com a vida e a liberdade de expressão. Acredito cada dia mais, na força da poesia – escrita, falada e cantada – como uma poderosa arma de conscientização. Tua poesia Caro irmão, estou seguro, fraternalmente se unirá à de quantos procuram, anônimos como você, ou não, servir à luta de nosso povo. Nós sabemos: - Falávamos disso lembra-se? – um dia, que não tardará tanto, o Amor triunfará.

Onde agora estiver poeta irmão, estaremos juntos.


Carta escrita “in memoriam” ao amigo Baltazar, 53 anos, Poeta Boêmio de Santos, falecido em 1999.

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