Ferreira Gullar, a expressividade da forma


Já me referi em artigo anterior à descoberta por nós, modernos, de que toda forma tem expressão. Uma descoberta de extraordinária importância, que se situa no centro mesmo da experiência estética contemporânea: é nela que se apóia a liberdade sem limites que caracteriza a arte deste século. Mas é também nela que reside uma das questões mais graves com que se defronta essa arte.
A descoberta é, não obstante, simplória, porque inevitável, desde que se questionaram os fundamentos da linguagem artística estabelecida, inventada pelos gênios do Renascimento, recuperada pelo neoclassicismo do século XVIII e transformada em dogma pela academia. A civilização européia, do mesmo modo que se julgava a única sociedade civilizada, considerava também sua arte como a expressão suprema e perfeita, diante da qual o que faziam os povos da Ásia, da África ou da América era mero barbarismo. A ruptura radical com as concepções acadêmicas e, em seguida, com os vínculos entre arte e natureza conduziu à desintegração progressiva da linguagem artística e pôs à mostra a expressividade das formas até então consideradas não-artísticas. A primeira conseqüência disso foi a valorização da arte dos povos ditos primitivos ou selvagens, como a escultura negra africana, as máscaras e totens da Oceania etc. Outra conseqüência igualmente significativa foi o surgimento das linguagens não-figurativas, ou fundadas na geometria, como a pintura de Mondrian e a escultura de Naum Gabo, ou em formas intuitivas ou oníricas como as de Picabia ou de Jean Arp, até chegarmos a rompimentos mais abruptos e drásticos como os de Duchamp com seus ready-made ou os dos surrealistas com o object trouvé.
Todas essas trilhas conduziram, de um modo ou de outro, à eliminação do suporte da pintura, ou seja, o quadro. Esse ponto merece algumas considerações. Como se sabe, a pintura anterior ao Renascimento é toda ela mural. O quadro de cavalete nasce nessa época, com a descoberta da tinta a óleo e o surgimento do burguês amador e colecionador de obras de arte. A pintura sai da parede e se torna um objeto transportável, colecionável, comerciável. Mas ninguém toma consciência de sua natureza de objeto: ele é apenas o suporte sobre o qual está a pintura. Mas, quando a revolução estética moderna apaga do quadro os objetos e depois a própria forma geométrica que, no neoplasticismo e no suprematismo, os substituía - quando enfim o artista se defronta com a tela em branco - não como o vazio anterior à obra e sim como o resultado da expressão, aí então o quadro se torna o objeto da pintura, releva a sua condição material de objeto, que estivera oculta ao longo de cinco séculos. Mas que fazer com essa descoberta? Exibir o quadro em branco? Isso seria o mesmo que parar de pintar. Muitos o fizeram, ou pintaram a tela inteira de uma cor qualquer. Claro, se toda forma tem expressão (e toda cor, igualmente), exibir uma tela em branco (ou vermelha) é expressar-se.
E é igualmente se expressar se se lança sobre essa tela em branco um traço qualquer; se se lançam dois traços, teremos outra expressão, outra obra; se se lançam três traços, outra ainda, e assim infinitamente. Pois bem, se é indiscutível que toda forma (ou conjunto de formas) tem expressão, não é menos certo que essa possibilidade indeterminada de expressões conduz à gratuidade e à anulação do trabalho artístico. Claro, se qualquer forma traçada sobre uma tela expressa alguma coisa, não importa mais nem o talento nem o conhecimento técnico: todo mundo é artista e ninguém o é. Se toda forma é expressão e se a arte, agora livre de qualquer definição ou princípio, não é mais que forma expressiva, então não se pode mais distinguir entre uma obra de arte e outra qualquer coisa, outro qualquer objeto. O urinol, que Duchamp enviou a uma exposição de arte, torna-se o símbolo da estética atual: não há diferença qualitativa entre um desenho de Klimt e um borrão de tinta, entre uma escultura de Brancusi e um caco de telha, uma obra de Rodin e um urinol. Só que ninguém preferiria colocar em sua sala, em lugar de uma obra de Rodin, um urinol comprado na loja da esquina.
Muito bem. Mas isso não quer dizer que a forma do urinol não seja expressiva. Ela expressa alguma coisa que só se manifesta através dela e que não se pode traduzir em nenhuma outra linguagem. O mesmo pode se dizer de qualquer outra forma seja um seixo rolado, um cabo de panela ou uma blusa. Se, por algum modo, conseguimos despojar essas coisas de sua significação ordinária, elas ganham a nossos olhos uma estranheza que não é senão a expressividade de suas respectivas formas. Eis por que a aparente brincadeira de Duchamp ao propor um urinol como obra de arte torna-se um questionamento da validez da expressão artística. E é esse mesmo questionamento que induz uma jovem artista brasileira a juntar cinzeiros de avião roubados para com eles constituir uma “obra de arte”, ou seja, uma forma expressiva. É a sua uma atitude legítima? Certamente. Mas não se deve perder de vista o fato de que a irreverência de Duchamp em 1917 implicava uma negação da atividade artística. Adotar como caminho a apropriação de objetos naturais ou industriais, hoje, já sem a negatividade do gesto de Duchamp, é uma atitude conformista e ingênua. Desconhece o fato de que a descoberta das formas dos objetos pode ser o dado deflagrador da criação artística. É essa descoberta que faz nascer a arte de Giorgio Morandi. Se este, em vez de pintar os objetos, decidisse simplesmente mostrá-los, jamais lhes revelaria a estranha beleza, e qualquer efeito que conseguisse teria sido momentâneo, efêmero e limitado. Com seus quadros, ele não apenas revela-nos uma face desconhecida dos objetos banais como ao mesmo tempo cria, com sua linguagem de tantas sutilezas, novos significados.
Quando o pintor, após a eliminação da Pintura, defronta-se com o quadro em branco, só lhe restam duas alternativas: ou abandonar a pintura ou voltar a criá-la na tela vazia. Mas se ele insiste em prosseguir no seu caminho destrutivo, pode, como fez Fontana, golpear a tela, abrir cortes nela. O que significa isso? Vejamos: quando o pintor usa a tela para criar imagens, espaços virtuais, seu gesto (o ato de pintar) transforma-se em ação criativa, geradora de poesia, fantasia; ao contrário, se ele abandona o pincel, desiste de “pintar”, e opta por golpear a tela, sua ação é meramente material: ganha sentido por violentar o comportamento usual do pintor: em vez de pintar, golpeia; em vez de criar, destrói. Como não poderiam os artistas que adotaram esse rumo passar o resto da vida a golpear telas, estenderam sua ação para fora dela, chegando ao ato extremo de Rudolf Schwarzkogler, que golpeou a si mesmo, mortalmente, castrando-se. E se o fez foi para incutir significado a uma ação que, deixando de ser criativa, perdeu o sentido. Do mesmo modo se explica a atitude da jovem que roubou cinzeiros de avião: ela buscou no delito o conteúdo para a sua ação de artista que, perdendo a linguagem, perdeu o sentido de seus gestos no mundo.

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