Louco.Eu?

Posfácio para Admiravel Mundo Louco

Há exatos vinte e oito, hospedei meu cérebro neste corpo. Sepultei aquele ser até então abobalhado e imoto. Que avesso a sua originalidade, brincava de pique esconde, de bola de gude, de empinar papagaios. Que imaginou ter sido um dos sete anões, que acreditou na bela adormecida, em papai noel, que tentou por todas as forças conter-me.
Os últimos dias que antecederam ao meu aparecimento, foram marcados por convulsões e experimentos escabrosos. Sabia, que outrora, tivera um “eu”, e que, a partir de então, seria apenas um objeto empanturrado de todas as drogas da solidão; as do mundo seriam fracas demais para me fazer esquecê-lo. Tendo agora me tornado um fratricida, teria ainda um lugar entre os homens?
Trancafiado em minha mente, procurava domar as próprias feras, matar os monstros, libertar-me para renascer. O medo deste meu “outro”, tornou-me presa de mim mesmo, tal pensamento me paralisava. E o medo de concebe-lo, de avançar sem saber o passo seguinte me apavorava. E dividido entre os dois pólos nada atraente, reuni enfim, forças para eliminar esse sentimento terrível, essa angústia de me sentir morto, de me sentir vivo, fragmentado, sem rastro ou esperanças.
E assim vim ao mundo.

Nascido do choque de meteoros, transvasado pela dor, contaminado pelo sumo ácido da infelicidade, doente e inexpressivo. Discípulo da escuridão, antiprofeta. Vendo minha geração nascer prostituída e drogada. Tendo aprendido a voar, pelas largas avenidas do inferno, tal como Piva, via putas, mendigos, loucos e demônios que avançavam sobre mim. De meus olhos cerrados, a cólera cascateava mansamente. Me fiz laboratório em busca da perfeita bondade alusiva. Definhei-me como forma definitiva de ser possuído. Conjurei os verdugos, na minha agonia já assumida, as pragas clamava para afogar-me no sangue jorrado das pias batismais. Convivi e refocilei na lama. Como experimento, dos delírios de Rimbaud, me tornei presa, amei com o furor de Maiakoviski, das orgias de Sade participei, encenei a dor lírica de Artaud, dos rituais secretos de Madame Blavatsky provei, do satanismo de Baudelaire fiz parte .
Desgraçadamente me descobri poeta, sendo incorporado e aceito por uma geração que cultua dentro de si um mundo além das fronteiras da “normalidade”. A loucura à tal pregação enraizou-se, das profundezas de minha alma emergia o desconhecido, esperava meu momento para algo propor: não importava-me o que. Tinha a voz: isto me bastava. Paguei caro por não ser surdo, não ser mudo. Sabia ser o além bastante espaçoso para minhas cobiças, para meus vôos; a terra e seus instantes a mim pareciam demasiadamente frágeis. A vontade de durar, levou-me a tal ponto, recusava-me à sedução malsã de um “eu” indefinido. Chafurdei-me à bem da imortalidade. Sobrevivi a normalidade imposta, e idealmente lúcido, logo idealmente normal, resisti à tentação de concluir, de findar. Venci o espírito, como hoje, sigo vencendo a vida e seus horrores. O espetáculo do homem – que vomitivo!
Agora, enquanto concluo este ensaio, vou assim falando para ver se tenho algum alívio, para ver se a poesia e a reflexão traga-me alguma resposta. Talvez seja em vão. Porque as respostas não estarão fora de mim, eu sei. Mais o alento de meus versos, quiça poderá reforçar meu cérebro e meu coração já tão cansados, ou ainda, tingir de nuanças mais leves e gentis as cinzas de minha tormenta pessoal.
E quando amanhecer poderei renascer com o sol e acreditar que minha loucura perdeu tudo, menos a razão.


Praia do curral, Ilhabela
inverno de 1993

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