por Humberto Pereira, A questão da escolha em "O sétimo selo" e "O sacrifício"


Há um oceano que envolve as relações entre cinema e filosofia. E, igualmente, Ingmar Bergman e Andrei Tarkovsky - dois dos mais importantes cineastas do século passado são donos de uma filmografia densa, que abre espaço para indagações filosóficas. Na obra desses cineastas dois filmes são particularmente marcantes: “O Sétimo Selo”, do primeiro, e “O Sacrifício”, do segundo. Os personagens principais desses dois filmes canalizam, por assim dizer, inquietações universais que são plasmadas na tela. Por isso, por conta da densidade com que os temas são apresentados -sem qualquer concessão aos imperativos do consumo, por exemplo-, são filmes que podem nos instigar a uma reflexão sobre nossas escolhas; sobre o modo como nos deparamos diante de uma obra de arte; sobre o modo como uma obra tem ou não importância para nossos sentimentos diante do mundo.
Assistir a um Bergman ou a um Tarkovsky exige algo como um comprometimento com uma certa visão de mundo, com um certo padrão de cultura. E isso quer dizer o seguinte: partilhar um universo cultural para além de clichês e esquetes. Trata-se, assim, daquilo que Erasmo de Roterdã chamou quatro séculos atrás de conduta civilizada. Passemos então a uma breve apresentação de Bergman e de Tarkovsky, com o fito de relembrar a importância desses cineastas e chamar a atenção para a sobrevivência dos temas que expressam. Com isso, possivelmente, reativar um interesse que creio anda meio adormecido, ou restrito a círculos meio que fechados, sobre como um certo tipo de cinema era feito e que merece algo como uma revisão para que lembremos de seus temas, das mensagens que passaram e, talvez principalmente, de que exigem algo mais que entretenimento.
Bergman é um diretor sueco nascido em 1918. De formação luterana (o pai era pastor), teve uma educação extremamente rígida -ecos dessa educação se fazem sentir em muitos de seus filmes, como em “Fanny e Alexander”. Como se pode ler numa autobiografia intitulada “Lanterna Mágica”, o diretor amargou uma criação autoritária, baseada em coisas como, pecado, confissão, castigo, perdão e indulgência. Ele revela que após contar uma mentira sempre recebia castigos constrangedores, como desfilar vestido de menina ou ser trancafiado num armário.
Bergman se inicia como crítico e autor de peças teatrais no início dos anos 40 e seu trabalho teatral é marcado pela forte presença das peças de Strindberg, maior dramaturgo sueco do XIX. Bergman, ainda, durante sua juventude, se ligou a rodas de intelectuais suecos que discutiam avidamente temas como o existencialismo de Kierkegaard, Sartre e Camus. No meio da década de 40, ele abandona o teatro e vai para o cinema. Embora seus primeiros filmes não tenham despertado grande interesse -são marcados pela influência do realismo poético francês, de cineastas como Marcel Carné e Jean Renoir- a partir do início dos 50 ele acaba se tornando o principal responsável pela recuperação do cinema sueco, que gozou de grande prestígio nos anos 20 com cineastas como Victor Sjöströn e Mauritz Stiller.
É na década de 50, no entanto, que Bergman nos lega alguns dos filmes mais representativos da história do cinema. “Mônica e o desejo” (1952) pode ser considerado como sua primeira obra-prima; a ele segue-se “Noites de circo” (1953), “Uma lição de amor” (1953), “Sorrisos de uma noite de amor” (1955) e “Sonhos de mulheres” (1955). Nesses filmes Bergman revela ao mesmo tempo um mundo decadente, onde vivem personagens solitários e infiéis. Com isso, retrata o sofrimento e a incomunicabilidade do ser humano, através de amor malbaratado e da irremediável solidão a que homens e mulheres estão condenados. Nesses filmes, principalmente em “Sonhos de mulheres”, ele mostra seu lado intimista; nesse último são narrados os dramas vividos por duas mulheres, seus sonhos, suas crises, tormentos e suas relações com o universo masculino, por meio de imagens repletas de alusões e num ritmo lento -longos planos-sequências, nos quais os diálogos estão praticamente ausentes e as imagens sugestivas. É essa marca do cinema de Bergman, que tem como ponto de partida o dinamarquês Carl Dreyer e o francês Robert Bresson, que vai influenciar toda uma geração de cineastas nos anos seguintes; dos quais destaco Michelangelo Antoniani, Alain Resnais, Fassbinder e, na Rússia, Tarkovsky.
Bergman retomará a temática feminina, ao expor personagens em situações de angústia, incomunicabilidade e obsessões em filmes posteriores como “Persona” (1966) “Gritos e Sussuros” (1973) e “Sonata de outono” (1978). Mas o que a crítica considera como suas obras mais importantes e influentes são “O Sétimo Selo” (1956) e “Morangos Silvestres” (1957). São filmes alegóricos em que está presente o sentido da existência humana quando o homem está posto diante da morte. Sobre “Morangos Silvestres”, trata-se de um “road movie” em que, através de flash-backs, mostra-se as reminiscências de um professor aposentado que, numa viagem de carro, vai receber um prêmio honorário numa universidade.
Feita essa breve apresentação de Bergman, de alguns de seus filmes principais, passemos a Tarkovsky. Em primeiro lugar, a filmografia de Tarkovsky sofreu uma influência muito grande da de Bergman; o uso constante do plano-sequência, ritmo lento, poucos diálogos e imagens sugestivas. Mas em Tarkovsky esses elementos ganham uma dimensão muito mais acentuada. Para Tarkovsky o enredo está praticamente a reboque das imagens. O que lhe interessa é captar o que ele chama de o tempo da imagem. O que há de mais importante para Tarkovsky, se se considera a autonomia do cinema, é o que a imagem pode sugerir por sim mesma, independentemente de qualquer fundo narrativo. Daí que o enredo de seus filmes pode se resumir a poucas linhas, mas os temas que ele aborda e, por conseguinte, a interpretação de seus filmes, desafia o espectador desatento. Todos os filmes de Tarkovsky são, num certo sentido, alegóricos; pode-se dizer que cada cena de um de seus filmes pode ser assistida e interpretada independentemente do filme. E que, na mesma medida, essa mesmo seqüência se insere numa visão bastante pessoal que ele tem da arte de filmar e do modo como entende o papel da criação artística para a vida humana.
Falemos um pouco de Tarkovsky. Depois de fazer estudos regulares de cinema, ele dirige “Infância de Ivan”, em 1962, filme no qual já aparecem os primeiros traços de sua concepção estética. Mas é só com “Andrei Rublev”, de 1966, que Tarkovsky cria um mundo totalmente independente do cinema soviético. Rublev é um pouco conhecido autor de ícones da Idade Média que Tarkovsky toma como modelo para mostrar as tensões que nos envolvem quando não temos certeza de nossa vocação ou de nosso destino, pois Rublev desiste de pintar diante da maldade do mundo que está à sua volta. Sua mente muda apenas quando encontra um jovem que está tentando forjar um sino. Ao ser indagado sobre como sabia que o sino tocaria, o jovem responde que não sabe nada de forja e que simplesmente tentara. O sino prova que tem som e o filme termina com uma maravilhosa seqüência de ícones que, supõe Tarkovsky, Rublev começou a pintar.
“Andrei Rublev” foi muito mal recebido pelas autoridades soviéticas, o filme foi censurado e só foi exibido pela primeira vez, de modo clandestino, no Festival de Cannes de 69. Tarkovsky é então descoberto pelo Ocidente. “Andrei Rublev” só foi liberado pelas autoridades soviéticas em 71. Momento em que ele está filmando “Solaris”, que para muitos é uma reposta soviética a “2001 - Uma odisséia no espaço”, de Kubrick, o único filme de Tarkovsky que foi razoavelmente bem recebido na ex-União Soviética.
Sempre em conflito com as autoridades soviéticas ele ainda faz em solo russo “O espelho” e “Stalker”. Até que se exila e faz seus dois últimos filmes –“Nostalgia” e “O sacrifício”- na Itália e na Suécia, respectivamente. “O sacrifício”, de 1986, ele não chegou a ver, pois morreu antes, vitimado por um câncer, aos 54 anos. Depois dessa apresentação sucinta desses dois cineastas, passemos a dois filmes deles que considero emblemáticos, e que modulam suas respectivas concepções estéticas e temáticas. “O sétimo selo” e “O sacrifício”.
A primeira seqüência de “O sétimo selo”, ao som de “Carmina Burana” e com uma águia sobrevoando sob um céu plúmbeo, uma voz em “off” faz remissão a uma passagem do Apocalipse de João: “E quando ele abriu o sétimo selo, fez-se um silêncio no céu, quase por meia hora; e vi sete anjos que estavam em pé diante de Deus, e lhes foram dadas sete trombetas”. Um cavaleiro medieval na praia ora; depois de sua oração, tem um encontro com a morte; o cavaleiro diz que já esperava pela morte, mas, exímio jogador de xadrez, propõe à morte um jogo. Enquanto ela não lhe vencer, ele vai procurar fazer algo que dê sentido à sua vida.
A abertura de “O sacrifício” é feita ao som de “O Evangelho de Mateus”, de Bach. Na seqüência inicial, um longo plano-sequência envolve dois personagens -um crítico teatral e seu filho pequeno- que estão regando uma árvore. A câmara os observa de longe, de modo que não haja distinção precisa entre eles e a paisagem. O pai diz ao filho que a ordem do mundo está em coisas aparentemente insignificantes que fazemos todos os dias, como regar uma planta seca e que não sabemos se vai florir. Logo surge um mensageiro, os dois travam um rápido diálogo sobre Nietzsche, a idéia do “eterno retorno” e, depois que o pai volta a ficar a sós com o filho ele lhe diz: “No princípio era o Verbo, mas você está mudo como um salmão”. O garoto está em processo de recuperação de uma operação na garganta, está proibido de falar; ouve em silêncio o pai lhe contar a história da árvore estéril.
Essas duas seqüências iniciais dão o mote para a compreensão do que Bergman e Tarkovsky vão propor nesses dois filmes: o sentido de nossas escolhas para nossa felicidade, o papel da religião e do místico em nossas vidas, a alusividade a elementos da arte, da religião, o tom melancólico. E, também, as soluções que propõem: Bergman e o apocalipse, de um lado; Tarkovsky e o evangelho, de outro.
“O sétimo selo”, então, narra as andanças do cavaleiro medieval por entre vilarejos grassados pela peste, até o seu encontro final com a morte. Nessas andanças o que creio ser interessante ressaltar é o modo como Bergman filma a angústia do cavaleiro. Num primeiro momento, pode-se supor que ele escolhe jogar xadrez com a morte para adiar o que ele sabe que é inexorável. Quer dizer, ele sabe que não pode escapar à morte. Mas, para quê esse prolongamento? Para se redimir de seus pecados? Para tentar dar sentido à sua vida?
Como contraponto ao cavaleiro e suas angústias, uma família de atores mambembes transita completamente inocente diante de tudo que se passa. E, por meio dessa família de atores mambembes, Bergman exibe um tipo de felicidade que pode ser alcançada por alguém que está absolutamente inocente em relação ao mundo. Na cena final eles são os únicos que sobrevivem à peste.
Do contraste entre as andanças do cavaleiro e da família mambembe que o acompanha é interessante notar o seguinte: a família simplesmente vive, eles se deslocam de um lugar para o outro, alheios ao mundo. O ponto de partida das ações do cavaleiro está em sua recusa em se entregar para a morte quando esta lhe aparece. Ocorre que, feita essa escolha -prolongar a vida até o lance final da partida-, não lhe traz nenhum momento de felicidade, mas apenas dúvidas, incertezas e angústia. E são essas dúvidas, incertezas e angústias que o corroem até o desespero. Pois diante da inexorabilidade da morte, ele joga desesperadamente como se alimentasse alguma esperança de vencer a morte. E no fundo esse me parece ser um ponto importantíssimo no filme. A escolha só é feita porque ele crê, de alguma forma, que possa sair vitorioso.
O jogo então passa a ter características curiosas. Não é mais o próprio jogo que se joga -digo, o jogo de xadrez-, mas o jogo de esquiva do jogo. Só que o cavaleiro não sabe que a morte perscruta suas confissões mais íntimas. E qualquer tentativa de lance que passe por sua mente, e que, para ele, faria parte de um jogo secreto de sua mente para ludibriar a morte, é rapidamente percebido pela morte. Ou seja, ele não sabe que suas esquivas e suas esperanças de ludibriar a morte são completamente vãs. O jogo é um passatempo; pior, um passatempo angustiante e desesperador. E isso ele só sabe porque não escolheu morrer no exato instante em que a morte lhe apareceu.
Contado assim, “O sétimo selo” parece uma projeção na tela de “Temor e tremor”, de Kierkgaard, para o qual se tem em vista a história de Abraão. Abraão que tem de escolher entre a fé em Deus e o sacrifício de seu filho. Posto diante dessa escolha, Abraão decide sacrificar o filho. Momento em que Deus se interpõe e coloca um animal no lugar do filho. Aqui e no filme a questão é: se Deus sabe o tempo todo o que se passa comigo, por que o jogo, por que a escolha? Ora, a resposta é: Deus sabe o que se passa na mente de Abraão, mas Abraão não tem acesso à mente de Deus. Mesmo que ele tenha tentado enganar Deus, fingir que sacrificaria o filho, Deus saberia. Mas Abraão não sabe que o que Deus sabe sobre suas intenções e simplesmente escolhe sacrificar o filho para demonstrar sua fé. Algo similar ocorre com o cavaleiro de Bergman. Ele não sabe que a morte sabe o que se passa em sua mente. Por isso a escolha; do contrário, não faria qualquer sentido escolher. Porque não sabe o que se passa na mente da morte, o cavaleiro nutre a esperança de que possa ludibriá-la. O sentido da vida, então, não está propriamente nas coisas vividas, mas nas escolhas. Que haja Deus ou não perscrutando nossa mente, somos aquilo que escolhemos. Uma vez que não temos acesso à mente de Deus, simplesmente escolhemos. Abraão, sacrificar o filho, o cavaleiro de “O sétimo selo”, jogar uma partida de xadrez com a morte.
Da mesma forma que “O sétimo selo”, e com título mais claramente evocativo, está “O sacrifício”, de Tarkovsky. Alexander, professor de estética e crítico de teatro, escolhe, com sua família, se isolar de tudo e de todos numa ilha para ficar apenas com seus pensamentos. Mas, de súbito, é assaltado pela eminência de uma hecatombe nuclear. E, mesmo na sua ilha distante, ele acompanha as notícias pela TV. Ora, ele construiu um mundo paradisíaco, alheio aos problemas humanos, em harmonia com a natureza. Mas, mesmo no paraíso, ele não pode fugir a uma outra escolha: sacrificar ou não tudo que ele construíra para que sua vida tivesse sentido? Num ato drástico, ele ateia fogo na sua bela casa; símbolo da harmonia que ele tanto buscou. Na cena final, seu filho, que passara o tempo todo em silêncio, diz: “No princípio era o Verbo; por que, papai?”.
A palavra -o “Verbo”- é escolhida: Alexander pede a Deus que o mundo se recomponha se ele abrir mão do que até então lhe é mais sagrado. E na escolha o sacrifício; sacrifício aqui resulta de uma escolha, como se, na escolha, através da palavra -o “Verbo”- já estivesse inscrito o sentido da vida e do mundo. Alexander simplesmente poderia aguardar pacientemente os acontecimentos. Ele não sabe, não tem como saber se a hecatombe o atingirá. Na verdade, as notícias não são precisas. Mas sua escolha está ligada ao desespero diante do sentido da vida. Viver é, de alguma forma, se sacrificar; ou dizendo de outra forma, abrirmos mão de um mundo, de uma forma de vida por outra, sem que tenhamos qualquer certeza de que tenha sido a melhor escolha. O mundo em que vivemos, o nosso mundo, resulta de nossas escolhas; de nossas escolhas mais prosaicas. Quando nos levantamos e regamos uma árvore estéril, quando ateamos fogo àquilo que passamos a vida toda construindo.
O sacrifício, então, não está propriamente em atear fogo à casa (o fogo na casa é uma alegoria: Alexander poderia atear fogo ao próprio corpo, e é isso que ocorre com um personagem de “Nostalgia”, filme anterior de Tarkovsky), mas na escolha: quando ele escolhe, quando escolhemos, sacrificamos um mundo. A escolha é algo como a destruição de um mundo possível. Não sabemos o que nos reserva quando deixamos de lado um mundo que se abre. Mas sabemos que esse mundo, deixado de lado, está irremediavelmente sacrificado.
Aqui em Tarkovsky também ecos de um existencialismo como o de Kierkgaard. O sentido da vida, então, não está propriamente nas coisas vividas, mas nas escolhas. Que haja Deus ou não perscrutando nossa mente, somos aquilo que escolhemos. Uma vez que não temos acesso à mente de Deus, simplesmente escolhemos. Abraão, sacrificar o filho, Alexander, sacrificar um mundo no instante em que ateou fogo à casa.
Embora se possa sustentar que os temas de Bergman e Tarkovsky são por demais pretensiosos, creio que o ponto importante aqui é: o que a experiência com o cinema pode nos ensinar sobre a vida, sobre o mundo, sobre nossas escolhas? Não se trata de buscar uma filosofia escondida em obras como “O sétimo selo” e “O sacrifício” -algo como uma filosofia do cinema-, mas de notar que, como a filosofia, a literatura, o teatro, a arte, o cinema nos ensina algo sobre a vida, o mundo, nossas escolhas; trata-se, então, de notar que alguns filmes -resultado da criação de um artista- são matizados a ponto de plasmarem questões e inquietações universais. Nesse sentido, as obras de Bergman e de Tarkovsky e em particular “O sétimo selo” e “O sacrifício” são emblemáticas.

Humbeto Pereira da Silva, é professor de filosofia e sociologia no ensino superior e crítico de cinema, autor de "Ir ao cinema: um olhar sobre filmes" (Musa Editora).

Comentários

Anônimo disse…
belo texto. sem dúvida Bergman é um dos maiores genios de sétima arte. parabens pelo blog

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