Rosário Fusco: fragmentos de "A.S.A. - Associação dos Solitários Anônimos"


- Quando formos uma potência em número de correligionários e simpatizantes, estabeleceremos um horário universal para a bênção diária do nosso trago de vida eterna. Isso não é uma regra: é o reconhecimento da conveniência de uma disciplina para o bem comum. Disciplina, aqui, quer dizer acordo. Formado o círculo em volta da Terra, nossas preces removerão outros mundos com um simples cálice d’água. Assim como o oceano cabe na gota do mar, numa gota d’água transistorizada todas as potências do céu e da terra se concentram. Nesse dia, passaremos a fornecer fórmulas de minúsculos comprimidos (de fabricação caseira) para serem ingeridos à noite, de acordo com a preferência ocupacional de cada um: estímulo de vocações e rendimento de profissões – do lixeiro à vendedora de violetas, passando pelos viciados em esperma – além da receita da grande pílula universal, que chamaremos de alfa-zero. Última etapa do nosso esforço pioneiro, capaz de servir indiscriminadamente aos futuros exercícios, físicos ou mentais, determinados pelo incontrolável avanço da eletrotécnica sociodinâmica. Todas as almas desencarnadas, ainda sem residência definitiva, entram na sua composição: só ontem “recebi” a dosagem que há trinta anos venho pedindo ao Alto. Nesse dia, repito, mais próximo do que muitos pensam, quererão nos acumular de honrarias, que dispensaremos: apelidos em ruas, prêmios em dinheiro, estátuas, nomes de produtos bioquímicos ou rótulos de berçários. Você sabe muito bem como os homens procedem na conjuntura. Vários sujeitos trabalham na “invenção” (quase sempre ocasional) de um engenho que sobe às estrelas, impulsionado pelo indigente querosene das lamparinas. Mas o herói do feito é o que subiu na máquina: nunca o seu maluco ideador. Cristalino: um piloto de prova não precisa ter talento. Os estilos e costumes de um tempo – dos móveis aos bidês, passando pelas consolidações da regras de comportamento civil – trazem as marcas dos poderosos da época, que ficam posando de seus autores históricos. As leis naturais carregam etiquetas de quem? De Deus ou as dos que, por acaso, as “surpreenderam”? As leis postuladas, passiveis de progresso e reformulações, são leis? Pode-se inventar o existente, ou simplesmente constatá-lo? Verificar é criar? Não citarei genealogias de “autores” para não lhe complicar a cabeça, já entupida dos problemas de seu amigo obcecado. De qualquer modo, fique certo de que estamos certos, meu caro. Não sei quando isso acontecerá, mas estou convicto de que ainda seremos celebrados em Aldebarã, onde pecado, crime e castigo não existem. Em compasso de evangélica paciência, aguardemos a próxima dissolução total da carne, que se reduzirá a carbono e água. Somente o espírito conta: todos sabem, mas poucos acreditam nisso. Apelo só vale enquanto não vira enrugada muxiba, que os parvos dos dois sexos esticam: pra se arrepender. A alma, ao contrário, não é elástica, sequer complacente. Você sabe que os colchões de molas, cedendo ao peso do corpo, afetam de uma só vez as dez espécies conhecidas do reumatismo? Porque o reumatismo é doença óssea, dos nervos e dos músculos, pertences básicos do que o plasma irriga. Mas, que é o sangue circulante senão o espírito liquefeito que, de negro azulado, bioquimicamente passa a vermelho? Se somos compostos de alma e corpo, já somos, individualmente, dois. Isto facilita a compreensão da latente convergência do todos em um, que é a Lei das leis, entrevista por São Paulo, num momento de menor fúria radicalista: porque ele era ferrenho partidário do “faça como eu faço”. Não somos iguais os dedos irmãos da mão que, se mergulhada num líquido escaldante, queima a todos igualmente. Entretanto, a extirpação de um, ou vários, não afeta os restantes. Cada qual é livre para construir o céu de seu gosto, sem o temor das sanções: do próximo ou do Alto. Quem segue a “si” não erra nunca. Isto também significa que, se há céu para uns, não pode existir o inferno para outros. Ninguém precisa de lutar pela salvação, mas simplesmente viver e salvar-se.

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