Samuel Beckett: fragmentos de "Malone Morre"

Logo enfim vou estar bem morto apesar de tudo. Talvez mês que vem. Vai ser abril ou maio. O ano ainda é uma criança, mil sinaizinhos me dizem. Quem sabe esteja errado, quem sabe consigo chegar até o dia da festa de são João Batista ou até mesmo o quatorze de julho, festa da liberdade. Qual o quê, sou bem capaz de durar até a transfiguração, me conheço bem, ou até a Assunção. Mas não acredito, não acho que estou errado em dizer que estas festas vão ter que passar sem mim, este ano. Tive essa sensação, faz dias que venho tendo, e acredito nela. Mas em que difere daquelas que fazem de mim gato e sapato desde que me conheço por gente? Não, esse é o tipo de armadilha em que não caio mais, meu desejo de pitoresco passou. Podia morrer hoje, se quisesse, apenas fazendo um pequeno esforço, se eu pudesse querer, se eu pudesse fazer esforço. Mas não me custa nada me deixar morrer, quietinho, sem precipitar as coisas. Alguma coisa deve ter mudado. Não vou forçar nenhum dos pratos da balança, nem pra cá, nem pra lá. Vou ser neutro e inerte. O único problema são as palpitações, tenho que ficar de alerta contra elas. Mas estou menos sujeito a palpitações agora, desde que vim para cá. Claro que ainda tenho meus ímpetos de impaciência, de vez em quando, tenho que me proteger deles, pelo menos por uns quinze dias ou umas três semanas. Sem exagerar em nada, claro, chorando e rindo com muito cuidado, sem passar da conta em coisa alguma. Sim, vou ser natural por fim, vou sofrer mais, ou menos, sem tentar tirar conclusões, vou prestar menos atenção em mim, não vou mais ser nem quente nem frio, vou ser morno, vou morrer morno, sem entusiasmo. Não vou ficar me olhando morrer, isso estragaria tudo. Por acaso fiquei me olhando viver? Me queixei alguma vez? Então para que me alegrar agora? Estou contente, no há outro jeito, mas não a ponto de bater palmas. Sempre vivi contente, sabendo que seria reembolsado. Lá está ele, meu velho credor. Nem por isso vou me atirar em seus braços, deveria? Não vou mais responder a nenhuma pergunta. Vou até tentar não mais fazê-las a mim mesmo. Vão poder me enterrar, não vão mais me ver na superfície.* Enquanto espero, vou tentar me contar histórias, se puder. Não o mesmo tipo de histórias que antigamente, sem dúvida. Não vão ser nem bonitas e nem feias, vão ser calmas, não vai mais haver nelas nem fealdade nem beleza nem febre, vão ser quase sem vida, como o narrador. Que foi mesmo que eu disse? Esqueçam. Elas vão me dar prazer, algum prazer. Estou satisfeito, é isso, pra mim chega, estou recompensado, não preciso de mais nada. Permitam-me dizer, antes que prossiga, que não perdôo ninguém.
Desejo a todos uma vida atroz e, depois, os fogos e gelos do inferno e um nome honrado entre as execráveis gerações que virão. Basta por esta tarde.
Desta vez, eu sei para onde estou indo, não é mais a antiga noite, a noite recente. Agora, é um jogo que eu vou jogar. Nunca soube jogar, até agora. Bem que eu queria, mas era impossível. Mas tentar, tentei. Acendia todas as luzes, olhava bem em volta, começava a brincar com o que via. Brincar é o que as pessoas e as coisas mais adoram fazer, certos animais também. A princípio, todas vieram de bom grado, vieram todos até mim, felizes que alguém quisesse brincar com elas. Se eu dizia, “agora eu quero um corcunda”, imediatamente um corcunda vinha correndo, todo prosa da bela bossa com que ia representar. Não lhe ocorria que eu poderia pedir que ele tirasse a roupa. Mas logo eu estava sozinho, no escuro. Foi por isso que desisti de brincar e fiz meus para sempre o informe e o inarticulado, as hipóteses incuriosas, a treva, o longo caminhar com os braços estendidos, o me esconder. Essa é a seriedade da qual, quase um século agora, não consegui nunca me desvencilhar. De agora em diante, vai ser diferente. De agora em diante, vou só brincar. Não, não devo começar com um exagero. Mas vou brincar boa parte do tempo, de agora em diante, a maior parte do tempo, se puder. Talvez não consiga melhores resultados do que antes. Quem sabe como antes vou me sentir abandonado, no escuro, sem ter com que brincar. Então vou brincar comigo mesmo. Ter sido capaz de conceber um plano desses é encorajador.
Devo ter pensado sobre o emprego do meu tempo, durante a noite. Acho que vou ser capaz de me contar umas quatro histórias, cada uma com tema diferente. Uma sobre um homem, outra sobre uma mulher, uma terceira sobre uma coisa e, por fim, uma sobre um animal, uma ave provavelmente. Acho que não estou esquecendo nada. Talvez eu coloque o homem e a mulher na mesma história, tão poucas as diferenças entre um homem e uma mulher, quero dizer, entre os meus. Talvez eu não tenha tempo para terminar. Por outro lado, talvez, eu termine cedo demais. Lá estou eu de novo às voltas com minhas velhas contradições teóricas. E essa a expressão? Sei lá. Pouco importa se eu não terminar. Mas se terminar cedo demais? Também não importa. Nesse caso, vou falar das coisas que ainda permanecem em meu poder, coisa que sempre quis fazer. Uma espécie de inventário. Seja como for, é o tipo da coisa que devo deixar para o último instante, para ter a certeza de não haver cometido nenhum equívoco.
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* Esta frase só existe no texto francês. [N.T.]

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