Erasmo de Roterdã: Fragmentos de "Elogio da Loucura"


Com efeito, sem prazeres, que é a vida? Merecerá o nome de vida?... Vós me aplaudis, meus amigos! Ah! Bem sabia eu que sois demasiadamente loucos, isto é, demasiadamente sábios, para não terdes a minha opinião... Até os estóicos amam o prazer, que não saberiam odiar. Deixemo-los dissimular, deixemos que se esforcem por difamar a volúpia aos olhos do vulgo, cobrindo-a das mais atrozes injúrias: são momices apenas! O que querem é afastar os outros, para dela gozarem com muito maior liberdade. Por todos os deuses! Digam-me eles qual o instante da vida que não é triste, tedioso, desagradável, insípido, insuportável, se o não condimenta o prazer, a loucura. Poderia contentar-me com o testemunho de Sófocles, o grande poeta jamais demasiadamente louvado, que tão belo elogio me fez, ao dizer: A mais agradável das vidas é a que se passa sem nenhuma espécie de sabedoria. Examinemos, pois, o assunto mais minuciosamente. Antes de tudo, não é verdade que a infância, a primeira idade do homem, é a mais alegre e encantadora das idades? Amam-se as crianças, beijam-se, abraçam-se, acariciam-se, defendem-se; o próprio inimigo não pode deixar de socorrê-las. Por quê? Porque, desde o instante do seu nascimento, a natureza, mãe previdente, as envolve numa atmosfera de loucura que encanta os que as educam, que lhes compensa o trabalho e atrai sobre tão pequeninos seres a benevolência e a proteção das quais necessitam.
E a idade que se segue à infância, que de encantos não tem aos olhos de todos! Com que ardor nos não atarefamos por a favorecer, ajudar e socorrer! Pois bem, quem dá a essa idade estupenda as graças que a tornam tão querida? Quem lhas dá, senão eu? Afasto dos jovens a sabedoria importuna e, com isso, sobre eles derramo o sedutor encanto dos prazeres. E, para que não penseis que não passo de mentirosa, considerai os homens, depois de inteiramente feitos, e depois de haver começado a experiência e as lições a torná-los sábios: desvanece-se-lhes a beleza, a alegria se lhes extingue, as forças diminuem, as graças fogem; à medida que de mim se distanciam, abandona-os a vida, até o dia em que atingem a velhice rabugenta, peso para si própria e para os outros.
Não há mortal que poderia suportar a velhice, se as misérias da humanidade me não obrigassem mais uma vez a socorrê-la. Como os deuses dos poetas os quais, quando os homens estão a ponto de perder a vida, os consolam mediante uma metamorfose, eu também mudo os anciãos à beira do túmulo, e, tanto quanto possível, os faço voltar à feliz idade da infância.
Se alguém pretende saber de que modo opero tal metamorfose, não serei eu quem faça disso mistério. Levo-os à fonte do Letes que se encontra nas Ilhas Afortunadas (no Inferno o que corre é apenas um pequeno ramo desse rio); ali, obrigo-os a sorver a longos tragos o olvido das misérias desta vida; as suas inquietações e os seus pesares se dissipam aos poucos, e eles rejuvenescem.

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