Octavio Paz: fragmentos de "Marcel Duchamp, ou o Castelo da Pureza"


Talvez os dois pintores que maior influência exerceram em nosso século sejam Pablo Picasso e Marcel Duchamp. O primeiro pelas suas obras, o segundo por uma obra que é a própria negação da moderna noção de obra. As mudanças de Picasso – seria mais exato dizer: suas metamorfoses – não cessaram de nos surpreender durante mais de cinqüenta anos; a inatividade de Duchamp não é menos surpreendente e, à sua maneira, não menos fecunda. As criações do grande espanhol foram, simultaneamente, encarnações e profecias das mutações que nossa época sofreu, desde o fim impressionismo até a Segunda Guerra Mundial. Encarnações: em suas telas e em seus objetos o espírito moderno se torna visível e palpável; profecias: em suas mudanças nosso tempo só se afirma para negar-se e só se nega para inventar-se e ir mais além de si. Não um precipitado de tempo puro, não as cristalizações de Klee, Kandinsky ou Braque, mas o próprio tempo, sua urgência brutal, a iminência do agora. Desde o princípio Duchamp opôs à vertigem da aceleração a vertigem do retardamento. Em uma das notas da célebre Caixa Verde anota: “dizer retarde em lugar de pintura ou quadro; pintura sobre vidro se converte em retarde em vidro – mas retarde em vidro não quer dizer pintura sobre vidro...”. Esta frase nos deixa vislumbrar o sentido de sua ação: a pintura é a crítica da pintura. Picasso é o que vai passar e o que está passando, o vindouro e o arcaico, o remoto e o próximo. A velocidade lhe permite estar aqui e ali, ser de todos os séculos sem deixar de ser do instante. Mais que os movimentos da pintura no século XX é o movimento feito pintura. Pinta depressa e sobretudo a pressa pinta com os seus pincéis: o tempo-pintor. Os quadros de Duchamp são a presentificação do movimento: a análise, a decomposição e o reverso da velocidade. As figurações de Picasso atravessam velozmente o espaço imóvel da tela; nas obras de Duchamp o espaço caminha, se incorpora e, tornando máquina filosófica e hilariante, refuta o movimento com o retarde, o retarde com a ironia. Os quadros do primeiro são imagens; os do segundo, uma reflexão sobre a imagem.
Picasso é um artista de fecundidade inesgotável e ininterrupta; as telas do outro não chegam a uma meia centena e foram executadas em menos de dez anos: Duchamp abandonou a pintura propriamente dita quando tinha apenas vinte e cinco anos. Certo, prosseguiu “pintando” por outros dez anos, mas tudo que fez a partir de 1913 é parte de sua tentativa de substituir a “pintura-pintura” pela “pintura-idéia”. Esta negação da pintura que ele chama olfativa (por seu odor a terebentina) e retiniana (puramente visual) foi o começo de sua verdadeira obra. Uma obra sem obras: não há quadros a não ser o Grande Vidro (o grande retarde), os ready-made, alguns gestos e um grande silêncio. A obra de Picasso recorda a de seu compatriota Lope de Veja e, na realidade, ao falar dela, teríamos que usar o plural: as obras. Tudo que Duchamp fez se concentra no Grande Vidro, que foi definitivamente inacabado em 1923. Picasso tornou visível o nosso século; Duchamp nos mostrou que todas as artes, sem excluir as dos olhos, nascem e terminam em uma zona invisível. A lucidez do instinto opôs o instinto da lucidez: o invisível não é obscuro nem misterioso, é transparente... Este apressado paralelo não é uma mesquinha comparação. Ambos artistas, como todos os que o são de verdade, sem excluir os chamados artistas menores, são incomparáveis. Associei seus nomes porque me parece que, cada um à sua maneira, definem a nossa época: o primeiro por suas afirmações e seus achados; o segundo por suas negações e explorações. Ignoro se não os “melhores” pintores desde meio século. Não sei o que quer dizer a palavra “melhor” aplicada a um artista. O acaso de Duchamp – com os de Max Ernst, Klee, Chirico, Kandinsky e outros poucos mais - , me apaixona não por ser “melhor” mas por ser único. Esta última palavra é a que lhe convém e o define.
Os primeiros quadros de Duchamp revelam uma mestria precoce. São os que alguns críticos ainda chamam “boa pintura”. Um pouco depois, sob a influência de seus irmãos mais velhos, Jacques Villon e o escultor Raymond Duchamp-Villon, passa do fauvismo ao cubismo moderado e analítico. Em princípios de 1911 conhece Francis Picabia e Guillaume Apollinaire. A amizade de ambos precipitou sem dúvidas uma evolução que, até então, parecia normal. Sua vontade de ir mais além do cubismo se adverte já em uma tela desse período; é o retrato de uma transeunte; uma jovem entrevista, amada e nunca vista outra vez. A tela mostra uma figura que se desdobra (ou se funde) em cinco silhuetas femininas. Representação do movimento ou, melhor dito, decomposição e superposição do Nu Descendo uma Escada. O quadro se chama Retrato de Dulcinéia. Cito esta particularidade porque por meio do título Duchamp introduz um elemento psicológico, neste caso afetivo e irônico, na composição. É o começo de sua rebelião contra a pintura visual e tátil, contra a arte “retiniana”. Mais tarde afirmará que o título é um elemento essencial da pintura, como a cor e o desenho. Nesse mesmo ano pinta outras poucas telas, todas elas admiráveis por sua execução e algumas ferozes por sua visão desapiedada da realidade; o cubismo analítico convertido em cirurgia mental. Este período se encerra com um óleo notável: Moinho de Café. Dessa época são também as ilustrações a três poemas de Laforgue. Esses desenhos têm um interesse duplo: por um lado, um deles é um antecedente do Nu Descendo uma Escada; por outro, revelam que Duchamp desde o princípio foi um pintor de idéias e que nunca cedeu à falácia de conceber a pintura como uma arte puramente manual e visual.
Em uma conversação que sustentou em 1946 com o crítico James Johnson Sweeney¹, Duchamp se refere à influência de Laforgue em sua obra pictórica: “A idéia do Nu se originou de um desenho que fiz em 1911 para ilustrar o poema de Laforgue Encore a cet astre [...]. Rimbaud e Lautréamont pareciam demasiado velhos naquela época. Queria algo mais jovem. Mallarmé e Laforgue estavam mais próximos do seu gosto [...]” Na mesma conversação Duchamp sublinha que são lhe interessava tanto a poesia de Laforgue como os seus títulos (Comice agricole, por exemplo). Esta confissão lança luz suficiente sobre a origem verbal de sua criação pictórica. Seu fascínio diante da linguagem é de ordem intelectual: é o instrumento mais perfeito para produzir significados e, também, para destruí-los. O jogo de palavras é um mecanismo maravilhoso porque em uma mesma frase exaltamos os poderes de significação da linguagem só para, um instante depois, aboli-los mais completamente. Para Duchamp, a arte, todas as artes, obedece à mesma lei: a metaironia é inerente ao próprio espírito. É uma ironia que destrói sua própria negação e, assim, se torna afirmativa. A menção de Mallarmé tampouco é acidental. Entre o Nu... e Igitur há uma analogia perturbadora: a descida da escada. Como não ver no lento movimento da mulher-máquina um eco ou uma resposta a esse momento solene em que Igitur abandona para sempre o seu quarto e baixa passo a passo os degraus que conduzem à cripta de seus antepassados. Em ambos os casos há uma ruptura e uma descida a uma zona de silêncio. Nela o espírito solitário se defronta com o absoluto e sua máscara: o acaso. Quase sem dar-me conta, como que atraído por um ímã, percorri em uma página e meia os dez anos que separam suas primeiras obras do Nu... Detenho-me. Esse quadro é um dos eixos da pintura moderna: o fim do cubismo e o começo de algo que ainda não termina. Em aparência – embora sua obra seja a própria evidência, não há nada menos aparente que a pintura de Duchamp – o Nu... se inspira em preocupações afins às dos futuristas: a ambição de representar o movimento, a visão desintegrada do espaço, o maquinismo. A cronologia proíbe pensar em uma influência: a primeira exposição futurista em Paris se celebrou em 1912 e já um ano antes Duchamp tinha pintado, a óleo, um esboço do Nu... Ademais, a semelhança é superficial: os futuristas queriam sugerir o movimento por meio de uma pintura dinâmica; Duchamp aplica a noção de retardamento – ou seja: a análise do movimento. Seu propósito é mais objetivo e menos epidérmico: não pretende dar a ilusão do movimento – herança barroca e maneirista do futurismo – mas decompô-lo e oferecer uma representação estática de um objeto cambiante. É verdade que também o futurismo se opõe à concepção do objeto imóvel, mas Duchamp transpassa imobilidade e movimento, funde-os para melhor dissolve-lo. O futurismo está cativo da sensação; Duchamp da idéia.
¹. Veja-se: Marcel Duchamp, Textos, p.50, nesse mesmo livro-maleta.
O uso da cor é também distinto: os futuristas se comprazem em uma pintura brilhante, exaltada e quase sempre detonante; Duchamp vinha do cubismo e suas cores são menos líricas, mais sóbrias e compactas: não é o brio, mas o rigor. As diferenças são ainda maiores se passamos da consideração exterior do quadro, à sua significação interna, isto é se penetrarmos realmente na visão do artista. (A visão não é só o que vemos: é uma posição, uma idéia, uma geometria – um ponto de vista, no duplo sentido da expressão.) Antes de tudo: a atitude diante da máquina. Duchamp não é um adepto de seu culto; ao contrário, ao inverso dos futuristas, foi um dos primeiros a denunciar o caráter ruinoso da atividade mecânica moderna. As máquinas são grandes produtoras de refugos e seus resíduos aumentam em proporção geométrica à sua capacidade produtiva. Para comprová-la basta passear por nossas cidades e respirar sua atmosfera envenenada. As máquinas são agentes de destruição e daí que os únicos mecanismos que apaixonam Duchamp sejam os que funcionam de um modo imprevisível – os antimecanismos. Esses aparelhos são os duplos dos jogos de palavras: seu funcionamento insólito os nulifica como máquinas. Sua relação com a utilidade é a mesma que a de retardamento e movimento, sem sentido e significação: são máquinas que destilam a crítica de si mesmas.
O Nu... é um antimecanismo. A primeira ironia consiste em que não sabemos sequer se se trata de um nu. Encerrado em corpete ou malha metálica, é invisível. Esse traje férreo não recorda tanto a uma armadura medieval quanto a uma carroceria ou fuselagem. Outro traço que o distingue do futurismo; é uma fuselagem surpreendida não em pleno vôo mais sim em uma lenta queda. Pessimismo e humor: um mito feminino, a mulher nua, convertido em um aparelho ameaçador e fúnebre. Mencionarei, por último, algo que já estava presente em obras anteriores: a violência racional, muito mais desapiedada do que a violência física em que se compraz Picasso. Na pintura de Duchamp, diz Robert Lebel, “o nu representa o mesmo papel que o antigo esfolado nos livros de anatomia: é um objeto de investigação interna” ². Sublinho por minha vez que a palavra interna deve ser entendida em dois sentidos: reflexão sobre a parte interna de um objeto e reflexão interior, auto-análise. O objeto é uma metáfora, uma representação de Duchamp: sua reflexão sobre o objeto é também uma meditação sobre si mesma. De certo modo cada um dos seus quadros é um auto-retrato simbólico. Daí a pluralidade de significados e pontos de vista de uma obra como o Nu...: criação plástica pura e meditação sobre a pintura e o movimento; culminação e crítica do cubismo; princípio de outra pintura e fim da carreira pictórica de Duchamp; mito da mulher nua e destruição desse mito; máquina e ironia, símbolo e autobiografia.
². Robert Lebel, Sur Marcel Duchamp, Paris, 1959.
Depois do Nu... Duchamp pintou alguns quadros extraordinários: O Rei e a Rainha, A Passagem da Virgem à Noiva, A Noiva. Nessas telas a figura humana desaparece de todo. Seu lugar não é ocupado por formas abstratas, mas por transmutações do ser humano em mecanismos delirantes. O objeto se reduz a seu elemento mais simples: o volume à linha, a linha à serie de pontos. A pintura se converte em cartografia simbólica e o objeto em idéia. Esta redução implacável não é realmente um sistema de pintura mas um método de investigação interior. Não a filosofia da pintura: a pintura como filosofia. Se bem que uma filosofia de signos plásticos sem cessar destruída, como filosofia, pelo humor. O aparecimento de máquinas humanas poderia nos levar a pensar nos autômatos de Chirico. Seria absurdo, por tudo que já foi dito, comparar estes dois criadores. O valor poético das figuras do pintor italiano provém da justaposição de modernidade e antiguidade; as quatro asas de seu lirismo são melancolia e invenção, nostalgia e adivinhação. Cito Chirico não porque haja alguma semelhança entre ele e Duchamp, mas porque é mais um exemplo da inquietante irrupção de máquinas e robôs na pintura moderna.

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