Octavio Paz: Fragmentos de "A Outra Voz"

QUANTIA E VALIA

Esta reflexão começou com uma pergunta dividida em duas partes. Uma, a primeira, de ordem quantitativa: quantos são os leitores de poemas? Como vimos, a questão numérica, isolada, não tem sentido. O numero de leitores varia com as distintas sociedades e épocas; varia, igualmente, no interior de cada época e ainda em relação à mesma pessoa: o esotérico e ilegível Eliot, lido por um bando de excêntricos em 1920, se converte no bispo Eliot, ouvido com unção por multidões em 1940. para ter sentido o quantos? Deve se associar com a segunda parte da pergunta: quem? Que classe de pessoas lêem livros de poemas? O quem inclui o quantos: melhor dizendo, o dilui, deixa de ser um numero. A pergunta sobre o quem implica, em primeiro lugar, pluralidade de espaços: onde? Em que país ou em que cidade? Em seguida, introduz uma dimensão temporal: quando, em que época, em que século, ano? Finalmente, o quando e o onde estão ligados a determinadas classes sociais, instituições políticas e religiosas e a determinada economia: a uma cultura. O quando e o onde se resolvem em uma história. A natureza do público que lê ou ouve poemas é uma questão histórica. O tema é vastíssimo e é impossível explorá-lo num ensaio desta índole. Por outro lado, sim, é possível anotar algumas idéias e esboçar alguma hipótese. Afinal, meu propósito é mais modesto: oferecer algumas sugestões e vislumbres, incitações para que alguém, um dia não muito longe, escreva um estudo sobre a situação da poesia ao terminar o século XX.
Começo pelo princípio: Homero é a origem da Grécia e, portanto, da nossa poesia. Seus grandes poemas, seus heróis e sua moral foram os arquétipos e estéticos e éticos de gregos e romanos. De certa forma a Ilíada e a Odisséia foram a Bíblia e os Vedas dos helênicos. As crianças e adolescentes recitavam os velhos hexâmetros enquanto aprendiam a somar ou a praticar exercícios físicos. Na grandiosa tentativa de helenizaçao de Roma, não podia faltar uma escritura poética de fundação que fosse o equivalente aos poemas homéricos. Mas a Eneida foi escrita no meio-dia da história de Roma: foi uma recriação mais que uma criação, não uma origem e sim uma consagração. Durante a Idade Média e o Renascimento a função formativa do poema de Virgílio foi análoga à dos poemas homéricos na Antiguidade. Na China teve a mesma influência civilizadora o Livro dos poemas (Shih Ching), a antologia dos poemas antigos compilados por Confúcio. No Japão cumpriram essa missão o Manyoshu (Coletânea das dez mil folhas) e as grandes antologias que sucederam a esse livro. A poesia como palavra fundadora de um povo é um traço que aparece em todas as civilizações, do poema de Gilgamesh, fonte provável de nossa tradição épica, ao do Cid. Em outras culturas, a poesia não só estava intimamente associada à religião e à mitologia como às outras artes. Sabemos, por exemplo, que os astecas recitavam, cantavam e, o mais admirável, dançavam seus poemas. Outro traço comum às antigas sociedade: as confrarias, irmandade e ordens de poetas. Estes agrupamentos com freqüência desempenhavam funções religiosas e litúrgicas. Entre muitos povos os poetas eram considerados videntes e adivinhos. Foi uma crença generalizada que e explica, muito provavelmente, pelo seguinte: o poeta conhecia o futuro porque conhecia o passado. Seu saber era um saber das origens. Em todas aquelas sociedades o presente e o futuro eram, no sentido matemático da expressão, funções do passado.
As coletâneas de textos poéticos, verdadeiras escrituras de fundação, constituíam o que nossa sociedade secular chama agora um cânone clássico. Sem esses poemas é impossível conhecer e compreender essas sociedades; sua influência estética, ética e filosófica foi imensa. Na Grécia a tragédia se alimentou da épica, de seus conflitos tanto quanto de seus heróis; a filosofia também se iniciou como uma crítica de Homero, sua teologia e sua moral. A transmissão do cânone clássico se fazia por meio da educação dos adolescentes; a poesia era matéria central no currículo dos jovens. Assim, ao lado da educação cívica e religiosa e dos exercícios bélicos, a poesia era uma iniciação à vida adulta em suas duas grandes vertentes: a ação e a contemplação. Cidadão, patrício, éqüite, mandarim, tecutli e outros nomes que designavam os grupos e categorias sociais que dirigiam os assuntos públicos das antigas sociedades, na paz e na guerra: todos eles eram educados e modelados em uma tradição poética que inspirava tanto seus discursos como seus atos.
A influência da poesia foi igualmente profunda em outros campos, sobretudo no da vida íntima: o erotismo, a amizade, o prazer, a piedade diante dos deuses ou do próximo infeliz (Aquiles diante de Príamo), a solidão, os prazeres amargos da melancolia, os reinos frágeis da memória. Os poetas nos ajudaram a conhecer as paixões e, assim, a nos conhecermos: a inveja, a sensualidade, a crueldade, a hipocrisia e, enfim, todas as complexidades da alma humana. O primeiro grande poema de amor do Ocidente é do século III a.C.: “La maga”, de Teócrito, doloroso relato do amor sensual e ingênuo, raivoso e sublime de uma jovem infeliz: Simetha. Mais tarde, em Roma, Catulo e Propércio iluminaram os rincões sombrios do amor e descobriram o poder insidioso de uma paixão funesta: os ciúmes. Sem eles, Shakespeare talvez não pudesse ter concebido a figura de Otelo nem Proust descobrir as agonias de Swann. Da época feudal à da burguesia, a poesia continuou inspirando os guerreiros e os apaixonados: Parsifal e Rolando, o amor cortês e o petrarquismo, os libertinos e os românticos. Uma das raízes do feminismo contemporâneo são as “cortes de amor” do século XII. A poesia também alimentou, como na Antiguidade e no Oriente, os filósofos: quase todos os nossos grandes pensadores escreveram poemas ou seus escritos estão esmaltados com versos e máximas dos poetas, de santo Tomás a Maquiavel, de Bacon a Shopenhauer, de Montaigne a Karl Marx. Desta perspectiva, a questão numérica desaparece. Não sabemos quantos romanos liam Ovídio, quantos italianos a Petrarca, quantos franceses a Ronsard; sabemos, contudo, quem os lia. Poucos ou muitos, esses leitores eram a cabeça e o coração da sociedade, seu núcleo pensante e atuante. Embora pertencessem às classes dirigentes, muitos eram rebeldes e críticos da ordem estabelecida. Outros eram solitários, ermitãos intelectuais.
A mudança começa em fins do século XIX. Depois das grandes batalhas campais do Romantismo, a poesia se retraiu: guerra no subsolo, conspiração nas catacumbas. Contudo, como vimos, essa retração foi uma vitória: os poetas malditos de ontem invariavelmente se convertem nos santos patronos de hoje. Mais grave foi o deslocamento dos estudos humanísticos, que deixaram de ser o centro de nossos sistemas educativos. Sinal dos tempos: Baudelaire escreve um poema em latim, Rimbaud ganha no ginásio o primeiro prêmio de composição latina, Lautréamont estuda preceptiva literária em um tratado de José Gómez Hermosilla, severo classicista e notável tradutor da Ilíada – mas Whitman é o primeiro grande poeta moderno que não passa por uma universidade e nem estuda humanidades. Perdas ou lucro? Eu diria que o lucro compensa a perda. Whitman continua outra tradição, não menos venerável que a greco-latina: a bíblica e seus derivados.
O lugar do latim e do grego é ocupado hoje pelas ciências. A mudança foi natural e justificada. Menos natural e totalmente injustificada foi a proeminência do cientismo, uma superstição moderna. Cada ciência pode falar com autoridade de seu domínio particular: não existe ciência e sim ciências. Mas o cientismo leva o discurso da física, da química ou da biologia a domínios que não são os da ciências naturais: a história e as sociedades humanas, o indivíduos e suas paixões. Por outro lado, é possível o exercício das ciências sem esse acervo de sabedoria que são as humanidades? Talvez, mas o custo é imenso. Nem Freud nem Einstein jamais esqueceram os clássicos.

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