Elias Canetti: Fragmentos "O Teatro Terrível"

Meditando sobre a imortalidade literária, Elias Canetti referiu-se a Stendhal e à grande autonomia daquele escritor diante de toda mística. A única fé de quem escreveu O Vermelho e o Negro residia na certeza de se dirigir para alguns poucos, sabendo que muitos o leriam no futuro. Quem assim opera, sente desprezo pelos que usufruem uma glória instantânea e a exibem vaidosa e tolamente. Stendhal teria feito algo muito próximo ao vivido por Maquiavel: o italiano afirmava que, após um dia comum, vestia as melhores roupas, entretanto em seu escritório para conversar com Platão e Aristóteles. Deste modo, O Príncipe entrou para a lista onde brilham a República e a Ética a Nicômaco. Nas palavras de Canetti, o escritor profundo opta pela companhia dos que produzem obras lidas ainda hoje “daqueles que falam conosco, dos quais nos nutrimos”. O reconhecimento que sentimos em relação a eles “é uma gratidão pela própria vida”.
Mais adiante, em Massa e Poder, é definido o símile entre o escritor imortal e o político. Este último, para garantir seu mando efêmero, arrasta para a morte tudo o que o cerca. Os poderosos “matam em vida, matam na morte, um séquito de mortos os acompanha para o além”. O contrário ocorre com o escritor fecundo, digno filho da Humanidade: quem abre hoje, amanhã e durante séculos um volume de Stendhal torna a encontrá-lo juntamente com tudo o que o rodeava, e o encontra aqui nesta vida. Assim, os mortos se oferecem aos vivos como o mais nobre de todos os alimentos. Sua imortalidade acaba sendo proveitosa para os vivos; nesta reversão da oferenda aos mortos, todos acabam sendo beneficiados. A sobrevivência perdeu seus aspectos negativos e o Reino da inimizade chega ao fim.
Se O Príncipe sobrevive indefinidamente, partilhando a memória dos povos com algumas poucas obras geniais, Massa e Poder, e vários outros escritos de Elias Canetti foram postos no escrínio delicado onde os leitores dignos nutrem tanto a alma quanto o intelecto. Como os grandes autores políticos e morais, Canetti, o ladino do século XX, para realçar os lados nobres do ser humano, pintou zonas sombrias do espírito coletivo, também mostrando os planos mais desprezíveis do ridicolosissimo eroe, seguindo a exclamação de Pascal. Platão zombou muito dos homens Aristóteles se interessou pelo riso, Pascal escreveu o insuperável tratado prático da caçoada, as Provinciais. Até mesmo Hobbes, aparentemente em inimigo da ironia risonha, utilizou a sátira como estratégia persuasiva, e enquanto meio para adquirir saberes sobre a imensa e gaiata família humana.
Seguindo os passos dos seus predecessores, Elias Canetti escreveu sátiras violentas sobre a cultura humana. A crítica apenas começa a explorar este veio nos seus textos. Já foram esboçados trabalhos sobre os nexos entre Nietzsche e Canetti, justamente ao redor do humor e da sátira. Este não é o lugar para uma análise dos livros recentes sobre semelhante tema. Irei apenas indicar alguns prismas, interligando o pensador às grandes correntes espirituais que alimentam a reflexão sobre a ética e a filosofia modernas.
Todos se lembram, com espanto, do manifesto contra a cultura livresca, O Auto -de- fé. Ali, vermes pedantes, os filólogos em especial, recebem a justiça que merecem. Nas suas memórias, Canetti insere momentos de ironia glacial, esclarecendo suas preferências no teatro. Para ele, o palco não aceita mais nenhum intimismo e nenhuma tese filosófica que vampirizaria as personagens, ao modo de Jean – Paul Sartre. Aristófanes foi o autor predileto de Canetti em termos de comédia. A crueldade exibida pelo aristocrático ateniense, “oferecia a possibilidade, para mim, de fornecer uma coerência ao que explode em mil fragmentos”.

Comentários

Janaina Amado disse…
Oi, Carlos Magno! Estou vindo do Peneira do Rato. MUITO BOM encontrar textos de gente de que tanto gosto, como Octavio Paz, Canetti e Erasmo (saudável mistura). Com Nerval, me identifico menos, mas é sempre bom ser provocada a revisitar. Pra dizer então que gostei do seu blog, me senti em casa aqui, e, se não for atrapalhar, volto. Gostaria de conhecer um pouco mais seu trabalho como artista plástico. Abraço.

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