Lautréamont: Fragmentos de "Contos de Maldoror"

CANTO QUINTO
Que o leitor não se zangue comigo se minha prosa não teve a felicidade de agradar-lhe. Afirmas que minhas idéias ao menos são originais. O que dizes, homem de bem, é a verdade; porém uma verdade parcial! Ora, que abundante fonte de erros e mal-entendidos reside em toda verdade parcial! Os bandos de estorninhos têm um modo de voar que lhes é próprio e parece submetido a uma tática uniforme e regular, tal como a de uma tropa disciplinada que obedece com precisão à voz de um só chefe. É à voz do instinto que os estorninhos obedecem e o instinto os leva a se aproximarem sempre do centro do pelotão, enquanto a rapidez do vôo os leva constantemente para mais além; de forma tal que essa multidão de pássaros, reunidos por uma tendência comum na direção do mesmo ponto imantado, indo e vindo sem cessar, circulando e cruzando-se em todas as direções, formam uma espécie de turbilhão extremamente agitado, cuja massa total, sem chegar a seguir uma direção bem determinada, parece ter um movimento geral de evolução sobre si mesma, resultante dos movimentos particulares de circulação próprios a casa uma das suas partes, e cujo centro, tendendo perpetuamente a desenvolver-se, mas incessantemente pressionado, empurrado pelo esforço contrário das linhas circundantes que sobre ele pesam, está constantemente mais pressionado que qualquer uma dessas linhas, que por sua vez são tanto mais numerosas quanto mais próximas estiverem do centro. Apesar dessa estranha maneira de rodopiar, nem por isso os estorninhos deixam de fender com rara velocidade o ar ambiente, ganhando sensivelmente, a cada segundo, um terreno precioso para o termo das suas fadigas e o objetivo da sua peregrinação. Tu, da mesma maneira, não liga à maneira estranha pela qual canto cada uma das minhas estrofes. Mas convence-te que os acordes fundamentais da poesia não deixam de manter seu intrínseco direito sobre minha inteligência. Não generalizemos fatos excepcionais, é o que peço; no entanto, meu caráter faz parte da ordem das coisas possíveis. Sem dúvida, entre os dois termos extremos, da tua literautra tal como a concebes, e da minha, existe uma infinidade intermediária e seria fácil multiplicar as divisões; mais isso não teria serventia alguma e correríamos o risco de dar algo de estreito e falso a uma concepção eminentemente filosófica, que deixa de ser racional desde o momento em que deixa de ser entendida a partir da forma em que foi imaginada, ou seja, com amplidão. Tu saber aliar o entusiasmo à frieza interior, observador de um humor concentrado; enfim, da minha parte, acho-te perfeito... E não queres entender-me! Se não estiveres em boas condições de saúde, segue meu conselho (é o máximo que posso fazer por ti) e vai dar um passeio pelos campos. Triste compensação, não achas? Depois de teres tomado ar, volta para reencontrar-me, com teus sentidos mais repousados. Não chores mais; não pretendia provocar-te sofrimento. Não é verdade, amigo, que até certo ponto tua simpatia foi conquistada por meus cantos? Ora, o que te impede de transpor os degraus restantes? A fronteira entre teu gosto e o meu é invisível; nunca poderás encontrá-la: prova de que essa fronteira não existe. Pensa então que (limito-me a esboçar a questão) não seria de todo impossível que tivesse firmado uma aliança com a obstinação, essa agradável filha da mula, tão rica fonte de intolerância. Se não soubesse que não és idiota, não te faria essa recriminação. De nada serve que te incrustes na cartilaginosa carapaça de um axioma que julgas inabalável. Há outros axiomas que também são inabaláveis e que caminham paralelamente ao teu. Se tiveres uma marcada preferência pelos caramelos (admirável farsa da natureza), ninguém considerará, mais enérgica e capaz de coisas maiores, prefere a pimenta e o arsênico, têm bons motivos para agir dessa forma, sem a intenção de impor sua pacifica dominação aos que tremem diante de um ratão silvestre ou da expressão falante das superfícies de um cubo. Digo-o por experiência própria, sem querer aqui fazer o papel de provocador. E assim como os rotíferos e os tardígrados podem ser aquecidos até uma temperatura próxima à ebulição, sem necessariamente perderem sua vitalidade, o mesmo pode acontecer contigo, desde que saibas assimilar com precaução a amarga serosidade supurativa que se desprende vagarosamente da excitação produzida por minhas interessantes elocubrações. Ora essa, não chegaram até mesmo a enxertar nas costas de um rato vivo a cauda arrancada ao corpo de outro rato? Tenta do mesmo modo transpor para tua imaginação as diferentes modificações da minha razão cadavérica. Mas sê prudente. No momento em que escrevo, frêmitos novos percorrem a atmosfera intelectual; trata-se apenas de ter a coragem de encará-los de frente. Por que fazes essa careta? E até mesmo tu a acompanhas com um gesto que só poderia ser imitado por uma longa aprendizagem. Podes estar certo que o hábito é necessário em tudo; e já que a repulsa instintiva, que aparecem desde as primeiras páginas, diminuiu notavelmente de profundidade na razão inversa da dedicação à leitura, como um furúnculo que está sendo lancetado, é preciso aguardar, embora tua cabeça ainda esteja doente, que tua cura certamente não tarde a entrar em sua etapa final. Para mim, é indubitável que já vogas em plena convalescença; no entanto, tua cara ficou bem magra, ai de ti! Mas... coragem! Existe em ti um espírito pouco comum, amo-te e não desespero da tua cura completa, desde que absorvas algumas substâncias medicinais que só farão apressar-se o desaparecimento dos últimos sintomas da doença. À guisa de alimentação adstringente e tônica, arrancarás primeiro os braços da tua mãe (se é que ela ainda existe), pica-los-ás em pedacinhos e os comerás logo em seguida, no mesmo dia, sem que qualquer traço do teu rosto traia a menor emoção. Se tua mãe for velha demais, escolhe algum outro objeto de cirurgia mais jovem e mais fresco, sobre o qual o escalpelo tenha domínio e cujos ossos tarsos, quando caminha, acham facilmente um ponto de apoio para fazer o movimento do balanço: tua irmã, por exemplo. Não posso deixar de lamentar seu destino e não sou daqueles em quem um entusiasmo muito frio só simula a bondade. Tu e eu derramaremos por ela, por essa virgem amada (mas não tenho provas para afirmar que ela seja virgem) duas lágrimas incoercíveis, duas lágrimas de chumbo. E será tudo. A porção mais lenitiva que te aconselho é uma bacia cheia de pus blenorrágico com nódulos, na qual previamente terás dissolvido um quisto piloso do ovário, um cancro folicular, um prepúcio inflamado virado para trás da glande por uma parafimose e três lemas vermelhas. Caso sigas essa receita, minha poesia te receberás de braços abertos, como um piolho que resseca, com seus beijos, a raiz de um cabelo.

Comentários

Janaina Amado disse…
Carlos Magno,
Passei aqui rapidinho (volto depois pra ler o Lautréamont), só pra dizer que linkei você no acreditando. E também que, quando você deixa comentário no meu blog, não consigo fazer a conexão direta do seu nome lá com este blog. Tô só avisando, não sei como consertar, pois sou interanta. Abração.
Janaina Amado disse…
PS - Corrigindo: likei você no enredosetramas.

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