Rainer Maria Rilke: Fragmentos de "O Diário de Florença"


São momentos apenas, mas nestes poucos momentos vejo as profundezas da terra. E vejo a origem de todas as coisas, como se fossem as raízes de árvores grandes e farfalhantes. E vejo como todas se entrelaçam e se amparam mutuamente, como se fossem irmãs. E todas alimentam-se de uma mesma fonte.
São instantes apenas, mas nestes instantes meus olhos descortinam as profundezas do firmamento. E lá vêem as estrelas como flores tranqüilas e sorridentes destas árvores farfalhantes. E elas balouçam, acenam umas para as outras, e sabem que de uma profundidade lhes advêm o perfume e a doçura.
São apenas instantes, mas nestes instantes os meus olhos abrangem a terra. E vejo que os seres humanos são troncos fortes e solitários que, à semelhança de amplas pontes, estabelecem uma ligação entre as raízes e as flores, e conduzem as seivas em direção ao sol, tranqüila e prazerosamente.
Ontem de manhã ainda aconteceu algo que me parece importante registrar aqui. Sentado no meu amplo terraço de mármore, eu estava fazendo as minhas anotações no meu livro, como ocorre todas as manhãs. O jardim à minha frente estava inundado de um sol tímido e temeroso, e, ao longe, sobre as dunas e o mar, estavam as sombras de nuvens densas. Alertado por um ruído áspero no cascalho, olhei para baixo e vi, na alameda central do jardim, um frade da Confraria Negra da Misericórdia, em suas vestimentas negras e simples, ocultado pela máscara negra que permite apenas pequenas aberturas para os olhos. Tal, como ele já estava, no meio do jardim, neste jardim claro, vermelho, no qual resplandecem em pleno vigor primaveril prímulas, papoulas e pequenas rosas vermelhas, ele era como a sombra de algum segundo ser que, gigantesco e invisível, haveria de se erguer ao seu lado. Ou então ele era como a própria morte, mas não aquela que atinge a pessoa desprevenida no auge de sua existência, e sim como o criado submisso que, convocado para determinada hora, honra a sua palavra, comparece serenamente e aguarda: estou às suas ordens. E por um instante esperei, com a respiração suspensa, se não haveria de aparecer alguém do terraço, alguma jovem loira ou algum homem silencioso e duro, surgindo do jardim, andando pensativo atrás do homem de preto. Surgindo do jardim – simplesmente do jardim...
Em toda esta experiência não senti medo nenhum, e tampouco acometeu-me qualquer um daqueles sentimentos que me teriam aniquilado na época das antigas superstições. Em seu tranqüilo regozijo, pareceu-me a vida neste momento como uma ampla moldura na qual havia lugar para tudo, e o fim não mais parecia terrível, porque o seu lado estava o começo, e a compensação entre ambos ocorria como um calmo e sorridente compromisso, semelhante ao balouçar das ondas. Através deste sentimento realizou-se em mim uma grande reconciliação, era como se uma rica e sagrada consolação houvesse depositado um beijo em minha testa, cuja bênção eu não haveria de perder nunca mais.

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