Aldous Huxley: Fragmentos de "Demônios da Loucura"

Quando o delírio das massas é explorado em benefício do governo e das igrejas ortodoxas, os exploradores são sempre muito cuidadosos em não deixar a intoxicação ir muito longe. As minorias governantes aproveitam-se do desejo ardente que sentem os seus governados pela transcendência horizontal para, primeiramente, distraí-los e, logo em seguida, colocá-los em um estado de sugestibilidade aguçada. As cerimônias políticas e religiosas são acolhidas pelas massas como oportunidades para se embriagarem e pelos governantes como oportunidades de implantar idéias em mentes momentaneamente incapazes de raciocinar e ter livre-arbítrio.
O sintoma final da doença provocada pela intoxicação de massas é a violência maníaca. Exemplos de delírio de multidões que culminam em destruição gratuita, em automutilação feroz, em selvajaria fratricida sem propósito e contra os interesses elementares de todos os envolvidos, são encontrados em quase todas as páginas dos livros dos antropólogos e – um pouco menos freqüentemente, mas com uma regularidade lúgubre – na história dos povos mais civilizados. A não ser quando desejam liquidar uma minoria impopular, os representantes do estado e da igreja são prudentes em não criar um furor que não têm certeza de poder controlar. Tais escrúpulos não constrangem o líder revolucionário que odeia o status-quo e que só tem um desejo: produzir um caos sobre o qual – quando tomar o poder – possa impor um novo tipo de ordem. Quando o revolucionário explora a necessidade humana da autotranscendência horizontal, o faz até o limite do demoníaco.
Aos homens e mulheres cansados de constituírem seres insulados e cansados de responsabilidade que implique a participação em um grupo humano com uma finalidade própria, oferece a oportunidade de “getting away fron it all” em paradas, demonstrações e reuniões públicas. Os órgãos do corpo político são grupos que têm um propósito. Uma multidão é o equivalente social de um câncer. O veneno que ela segrega despersonaliza seus membros até o ponto em que começam a agir com uma violência selvagem da qual, em seu estado normal, seriam totalmente incapazes. O revolucionário encoraja seus seguidores a manifestarem este derradeiro e pior sintoma da intoxicação de massa e então passa a dirigir sua fúria contra os inimigos, os que detêm o poder econômico, político e religioso.
Nos últimos quarentas anos, as técnicas de exploração do desejo humano desta perigosa forma de transcendência horizontal atingiram um estágio da perfeição sem rival em toda a história. Para começar, existem mais pessoas por milha quadrada do que antes e, a possibilidade de transportar vastos rebanhos de pessoas para distâncias consideráveis e de os concentrar em um só local é muito mais efetiva do que no passado. Enquanto isso, foram inventados novos instrumentos inimagináveis para excitar as multidões. Há o rádio que aumentou enormemente o alcance da voz rouca do demagogo. Há o alto-falante, que amplificou e duplicou indefinidamente a música violenta do ódio de classe e do nacionalismo militante. Há a câmara (da qual se disse uma vez, ingenuamente, “não poder mentir”) e seus frutos: o cinema e a televisão; estes três tornaram a objetivação de fantasias tendenciosas absurdamente fácil. E há finalmente a maior de nossas invenções sociais, a educação gratuita e compulsória. Todos sabem ler e todos estão, por conseguinte, à mercê dos propagandistas, tanto do governo quanto do comércio, dos donos das fábricas de polpa, das linotipos e das prensas rotativas. Junte uma multidão diária de jornais; submeta-os a uma música de orquestra amplificada, luzes brilhantes e à oratória de um demagogo que (como os demagogos o são sempre) é simultaneamente o explorador e a vítima da intoxicação da massa e, num instante, pode-se reduzi-los a um estado de quase sub-humanidade. Nunca tão poucos foram capazes de transformar tantos em bobos, maníacos e criminosos.Na Rússia comunista, na Itália fascista e na Alemanha nazista, os exploradores do fatal gosto humano pelo veneno segregado pelas multidões seguiram o mesmo caminho. Quando revolucionários, na oposição, encorajaram as multidões sob sua influência a se tornarem destrutivamente violentas. Mais tarde, quando no poder, só em relação aos estrangeiros e outros bodes expiatórios é que permitiam que a intoxicação das massas se espraiasse livremente. Tendo adquirido um interesse oculto na manutenção do status-quo, mantiveram a descida para a sub-humanidade em um ponto longe do furor. Para estes novos conservadores, a intoxicação das massas era principalmente valiosa, daí por diante, como meio de aumentar a sugestionabilidade de seus súditos, e torná-los mais dóceis às expressões da vontade autoritária. Estar entre a multidão é o antídoto mais conhecido contra o pensamento independente. Daí a firma objeção dos ditadores à “simples psicologia” e à “vida privada”. “Intelectuais do mundo, uni-vos! Nada tende a perder a não ser o cérebro

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