Pascal Bruckner: Fragmentos de "A Euforia Perpétua - Ensaio sobre o dever de Felicidade"


A DIVINA INCONSEQUÊNCIA
Não há, pois, salvação fora da banalidade, ou mais precisamente, esta última constitui contraditoriamente o freio e a possibilidade da primeira (ao mesmo tempo que exclui qualquer esperança de salvação definitiva). Sonhar com a abolição da banalidade é nutrir, sob uma aparência de grande energia, uma fantasia policial para disciplinar à custa de excitantes o enfadonho escoar dos dias para dele extrais o máximo de sensações. Deveríamos então qualificar de inexistente a vida das pessoas idosas, para as quais a disponibilidade de prazeres encolheu, mas que, apesar da diminuição, continuam a usufruir de inúmeras satisfações? Não conseguimos sair da mesmice do cotidiano apenas com a força de vontade ou a exortação e “a mais agradável as disposições tem muitos intervalos de abatimento”, como dizia a Enciclopédia no século XVIII. Os surrealistas pretendiam encantar de novo o mundo, os situacionistas alçar a vida até os cimos. Mas, da mesma maneira que o slogan “Viver sem tempo perdido e gozar sem entraves” tornou-se o da mercadoria e da informação que circulam dia e noite sem pausas nem fronteiras, a transmutação surrealista do banal degenera muitas vezes em faquirismo quando se contenta em nos dourar a pílula, em praticar o embelezamento sistemático. Não basta um pouquinho de brilho nos olhos e uma enorme grandiloqüência para, de repente, fazer surgir palácios sobre os escombros dos casebres. (Resta saber por que estes dois movimentos de insurreição contra a vida – e o primeiro tinha, ainda assim, mais genialidade, mais brilhantismo – mergulharam bem depressa em prestações de contas, invectivas, excomunhões, como se a velha perversão humana se vingasse dos que haviam pretendido expulsá-la.)
A despeito do desagrado dos cruzados do arrebatamento, não existe revolução contra o tédio: existem fugas, estratégias de derivação, mas o déspota cinzento resiste de forma contumaz. Pois ele tem suas virtudes: derruba-nos, mas nos obriga a empreender, permite-nos aprofundar os recursos insuspeitados da duração. Em seu torpor, anuncia por vezes modificações radicais. Sem o tédio, sem essa sonolência do tempo na qual as coisas perdem o sabor, quem jamais abriria um livro, deixaria sua cidade natal? Temos tudo a temer de uma sociedade do divertimento contínuo que sature dia e noite nossos mínimos anseios.
Robert Misrahi: “A vida feliz implica uma experiência qualitativa que una a satisfação à significação, ou seja, a densidade de uma presença em si em harmonia com ela mesma e a coerência de um sentido efetivamente desejado e realizado.”¹ Parece-nos, ao contrário, que um momento de felicidade é um momento escapado da tirania do sentido, uma trégua na duração, evaporação provisória da angústia. Não quer dizer nada estar alegre, rir ou abraçar entes queridos, mas nos faz bem. Por que a felicidade precisaria de sentido como o manco de sua bengala? É por meio de sua divina travessura que nos gratifica sem razão, explode como se fosse uma fanfarra ou insinua-se furtivamente entre os dias para eclipsar-se da mesma maneira. A maior das felicidades talvez seja a que apresenta um grau elevado de arbitrariedade, que não resulta de nenhuma espera, nenhum cálculo, que cai sobre nós como um dom dos céus, interrompe o curso do tempo e nos deixa desconcertados, encantados, transidos. (E podemos também revisitar a humilde morada de nosso passado e lá encontrar inúmeros instantes em que fomos felizes sem saber.)
Se a felicidade fosse realmente, como vivem nos repetindo, o voto mais caro de todos, se pudéssemos impô-la por decreto ou aprisioná-la com uma rede, como explicar por que tantos homens no momento em que vão alcançá-la tratam de destruí-la, pisoteá-la, como se pressentissem que essa vitória seria pior do que a derrota? Como se suspeitassem de que nada se parece mais com o Inferno do que o Paraíso, que este último pode ser entrevisto mas não alcançado (como sabem os toxicômanos, pois para eles o prazer absoluto do flash inverte-se rapidamente e transforma-se na sede atroz da abstinência). Se, por milagre, no espaço de uma noite, todas as nossas vontades fossem realizadas, seríamos consumidos pelo tédio: é por isso que a imortalidade prometida pelas religiões promete, mais do que tudo, uma eternidade de embrutecimento.

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