Darcy Ribeiro: Fragmentos de "Confissões"


MULHERES
As mulheres sempre me interessaram soberanamente. Desde que me lembro de mim, criança ainda, me vejo embolado nelas. Carente, pedindo carinho. Encantado, querendo encantar. Quis ter muitíssimas, se conto as duas ou três que sempre tive em mente como senhoras dos meus desejos. Alcancei as graças de pouquíssimas. Uma pena.
Foram elas, são elas, o sal de minha carne, o gosto e gozo de meu viver. Marinheiro neste mundo, amor é o vento que sopra minhas velas nas travessias. Amando, navego por mares calmos e bravos, me sentindo ser e viver. Não posso é viver sem amor, desamado, na pasmaceira das calmarias; parado, bradando de ver o mar da vida marulhar à toa.
Um olhar trocado, instantâneo, me acende todo em expectativas. Antigamente, jovem, tímido demais, ficava nisso, esperando outra piscadela, com medo de que me fugisse, nem olhares me desse mais. Maduro, fiquei meio ousado, impaciente. Ao primeiro sinal de assentimento provável me precipito. Assusto, assim, muitas vezes, amores levemente prometidos; nem isso, apenas insinuados, que perco porque os quero ter ali e agora, pressuroso.
Aos olhos das moças de hoje, minhas netas, sou um velho. Sou mesmo e isso me dói muito demais. Quisera o impossível de ser confundido com a rapaziada de agora, felizarda. A sedução intelectual às vezes remedeia um pouco. Raramente. Quando ocorre um desses encantamentos, são elas que avançam. Um beijo facial inocente, que passa raspante, lambido, pela boca, dá sinal de que ela, talvez, esteja a fim. Se acontece, nos precipitamos no canal vertiginoso. Para amar é que eu quisera viver mais e mais. Viver jovem, tesudo, seduzido, seduzindo. Quem me dera.
O amor é a mais funda, mais sentida e mais gozosa e mais sofrida das vivências humanas, e suspeito muito que o seja também para todo ser vivente. Cada pessoa devia amar todos os amores de que fosse capaz. Sucessivamente, em amores apaixonados, cada um deles vivido e fruído como se fosse eterno. Podem-se amar até simultaneamente amores apaixonados. Mas é um perigo. Faça isso não, arrebenta o coração.
Haverá que diga, imprudente, que não falo de amor, mas de carnalidade. É certo. Amor, uma doida já disse: é carne feita espírito. Todo amor, amor mesmo de homem a mulher e vice-versa, de homem a homem, de mulher a mulher, tem sua base carnal ou é um mero encantamento. Há uns pobres amores chamados paternais, filiais, fraternais, amigais – embora se diga que são contaminados, eles também, de carnalidade, mas este é outro departamento.
Amor sem desejo e confluência é fervor, bem querer, ou o que se queira. Mas amor não é. Somos seres irremediavelmente solitários. Ao nascer, rompemos, sangrando nossa mãe, o vínculo carnal com ela, que se recupera em nostalgia, mamando, sonhando. A única comunicação possível, desde então, é a carnal, do amor. Nele é que comungando nossos corpos engolfados um no outro, rompemos por instantes a solidão para, sendo dois, nos fazermos um naquele sagrado instante.
O só desejo de confluir, ainda que irrealizado, porque inalcançável, é ainda amor. A ausência de desejo é, já, desamor. Às vezes, há um ser muito querido, mas que é tão-só um amor amado. Há, concordo, carnalidade sem amor. São prevaricações. Gratificantes por vezes, até demais. Tanto que alguma gente, homens sobretudo, se vicia nelas, até querendo fornicar e variar. São bichos-gente, incapazes de amar.
Na sucessão das estações da vida, o tempo, fera, nos vai comendo. Primeiro, os anos infantis da idade dos dentes de leite, mal capazes de morder, quando todo amor é vão e temporão. Depois, os juvenis, tão aflitos, excitantes, tímidos, frente a um mundo suculento, frutuoso, oferecido ao desejo, e a gente sem coragem de colher o seu, deixando passar enquanto o tempo nos esgota aquela idade. Mais tarde, apenas mauro, maduro já ou madurão, nos chega pleno em atracações de meses, de anos, todas eternas enquanto duram, disse ele. Depois? Ora depois, depois vem a era de quem era, triste era.

Comentários

Janaina Amado disse…
Carlos Magno, de volta aos blogs, passei por aqui. Uma delícia reencontrar este texto do Darcy Ribeiro. Abraço.

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