Henry Miller: Fragmentos de "A hora dos assassinos (um estudo sobre Rimbaud)"

Analogias, afinidades, correlações e repercussões.

Foi em 1927, no fundo do porão de uma casa encardida de Brooklyn, que ouvi falar pela primeira vez em Rimbaud. Tinha então 36 anos e estava mergulhado na minha própria e tardia Temporada no Inferno. Um livro fascinante sobre Rimbaud rolava pela casa sem despertar minha curiosidade. O motivo era o ódio que sentia pela dona do livro, que na época morava conosco. Depois descobri que, em matéria de aspecto, temperamento e conduta, a mulher se parecia tanto com ele quanto é possível imaginar.
Como já disse, embora Rimbaud fosse o tema principal das conversas entre Thelma e minha mulher, não fiz o menor esforço para conhecê-lo. Para dizer a verdade, lutei feito louco para tirá-lo da idéia; me parecia então o gênio do mal que, sem querer, era causa de todos os meus problemas e angústias. Notei que Thelma, a quem desprezava, se identificava com ele a ponto de tudo fazer para imitá-lo, não só no comportamento como também no tipo de versos que escrevia. Tudo conspirava para me levar a repudiar-lhe o nome, a influência, a própria existência. Eu me encontrava então no mais baixo degrau de minha carreira, com o ânimo completamente arrasado. Ainda me vejo sentado de lápis na mão, no frio e úmido porão, à luz de uma vela trêmula. Tentava escrever uma peça teatral que descrevesse minha tragédia. Nunca consegui ir além do primeiro ato.
Nesse estado de desespero e esterilidade, nada mais natural que não acreditasse no gênio de um poeta de dezessete anos. Tudo o que já tinha ouvido falar dele soava como invenção da louca da Thelma. Na época sentia-me capaz de crer que ela tivesse o poder de arquitetar tormentos sutis só para incomodar, já que nosso ódio era recíproco. A vida que nós três levávamos, e que descrevo com minúcias em A crucificação encarnada, assemelhava-se a um episódio tirado de uma narrativa de Dostoievski. Hoje, parece-me incrível e irreal.
O que interessa, porém, é que o nome de Rimbaud me ficou gravado na memória. Ainda que fossem se passar ainda uns seis ou sete anos para dar uma olhada em sua obra, na casa de Anais Nin em Louveciennes, sua presença sempre me acompanhou. Uma presença perturbadora, por sinal. “Um dia você terá de me enfrentar.” É o que a voz dele repetia sem parar nos meus ouvidos. Quando li o primeiro verso de Rimbaud, de repente lembrei que era de Le Bateau Ivre, que Thelma colocava nas nuvens. O barco bêbado! Que expressivo parece agora esse título em vista de tudo o que aconteceu a partir de então! Thelma, no entretempo, morreu no hospício. E se eu não tivesse ido para Paris, e começado a trabalhar lá a sério, acho que teria o mesmo destino. Naquele porão de Brooklyn o meu navio também tinha ido a pique. Quando finalmente a quilha se partiu ao meio e saí boiando até o alto mar, percebi que estava livre, que a morte que sofrera havia me salvado.
Se esse período em Brooklyn representou a minha Temporada no Inferno, então a fase parisiense, principalmente de 1932 a 1934, foi a fase das minhas Iluminações.

Comentários

alex ci disse…
Periodicamente visito este Blog e sempre me surpreendo ou sou lembrado que nesta era eu tenho um Henry Miller para re-ler e um Rimbaud para terminar! Obrigado Carlos Magno!

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